O Globo, n. 32583, 22/10/2022. Brasil, p. 12

Caminhos do canabidiol

Arthur Leal


A cada crise, Fernanda Athagami Lima, de 38 anos, tinha que levar o filho, às pressas e com o coração apertado, a uma emergência. Com autismo severo e epilepsia, Rafael tinha um quadro grave que desafiava neurologistas e psiquiatras. Até que o canabidiol surgiu na vida do menino, hoje com 11 anos. Com a melhora sensível do filho, Fernanda deixou para trás as incertezas que tinha sobre o tratamento, mas passou a enfrentar a insegurança jurídica. Sem regulamentação até hoje, o uso medicinal da cannabis deixa pacientes e familiares à mercê de um mercado clandestino, formado não só por produções artesanais muitas vezes sem controle de qualidade, mas também por traficantes.

A comercialização do óleo de canabidiol, sem chancela da Anvisa, preocupa pacientes, especialistas e a própria polícia. Fernanda lembra que adquiriu o produto para iniciar o tratamento do filho numa plantação ilegal por falta de informações e de acesso ao medicamento. Em março do ano passado, policiais do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) do Mato Grosso do Sul apreenderam 4,5 litros de óleo de maconha com dois homens na BR-463. Eles assumiram estar traficando o produto de uma fazenda de Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Em agosto do mesmo ano, um homem de 36 anos foi preso em Curitiba (PR) com 30 mil medicamentos e anabolizantes de origem estrangeira. Entre eles, óleo de cannabis. Flagrado, passou a responder por tráfico. A Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal afirmaram ainda não dispor de dados compilados sobre a apreensão de canabidiol.

— Recorri à cannabis pelo desespero de ver meu filho tomando tantos remédios que não surtiam efeito. Sem apoio e com a desinformação geral, tinha receio de dar o medicamento para o meu filho — diz Fernanda, acrescentando que hoje, com autorização da Justiça, produz a própria cannabis para fabricação do produto.

Para piorar a situação, o Conselho Federal de Medicina decidiu que médicos devem restringir o uso de canabidiol a casos a tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia, provocando protestos de associações médicas que veem risco de retrocessos no tratamento de milhares de pacientes que dependem da substância. Hoje, em uma grande rede de farmácias, 30 ml do óleo na concentração de 200 miligramas custa R$ 2,5 mil. Mas oscilações de mercado podem elevar o preço para R$ 4,5 mil.

Autorização para mães

A psiquiatra Eliane Nunes, diretora-geral da Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa, que defende o uso medicinal da planta, tem se deparado com histórias como a de Fernanda, que tomou conhecimento ao ser procurada pela mãe em busca de garantir o acesso do filho ao remédio. Ela fundou o projeto Mães Jardineiras, que assessora e ensina pessoas a cultivarem a cannabis para fins medicinais e auxiliar no processo de regularização do plantio. Como Fernanda, outras nove mães já têm autorização legal para cultivar a planta da maconha. O processo de fabricação é simples e consiste na extração do canabidiol, que não tem efeito psicoativo, e do THC.

O produtor autorizado deve apresentar um laudo médico e parecer agronômico à Justiça,em prazos que variam. Ao mesmo tempo, o impasse sobre a regulamentação cria um problema de segurança que tem sido tratado em outra frente. Recentemente, o Laboratório de Síntese e Análise de Produtos Estratégicos do Instituto de Química da UFRJ desenvolveu um kit, baseado no método Duquenois-Levine, que existe há 80 anos e permite um teste rápido para verificar a formulação do óleo de canabidiol em qualquer ambiente ou temperatura, o que começa a ser usado pelas polícias. Amostras do kit, que deve ser patenteado pela UFRJ, foram disponibilizadas para a Polícia Civil do Rio.

À frente do grupo de pesquisa, o professor Cláudio Cerqueira explica que o exame pode ser usado por policiais para avaliar se o óleo de canabidiol eventualmente apreendido tem ou não fins medicinais.

— O kit ajuda no controle terapêutico, com análise da qualidade do produto, e como aliado na segurança pública — diz Cerqueira, acrescentando que a inovação permite o maior controle de qualidade para produção em larga escala. — Morfologicamente, os diferentes tipos de cannabis são iguais. Mas a composição é diferente. O canabidiol-CBD, presente na cannabis medicinal, pode tratar pacientes com Mal de Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla, convulsões, fobias, intensa ansiedade. Há inúmeros benefícios.

Cerqueira acredita ainda que o kit de testagem terá o efeito de facilitar a regulamentação do plantio da cannabis medicinal caseira. Em junho, a advogada do projeto Mães Jardineiras, Bianca Uequed, obteve autorização para três pacientes produzirem o medicamento: uma mulher com câncer de mama e o sobrinho, que sofre de depressão, e um paciente com transtorno de ansiedade generalizada, síndrome do pânico e diabetes.

— No projeto, ensinamos a plantar de forma que as mães tenham salvo-conduto para exercer um direito de à saúde sem serem presas. A gente recomenda que as famílias procurem associações sérias e que nunca comprem de terceiros ou por indicação de amigo. O desespero e dificuldades financeiras podem levá-los a ser vítimas de criminosos — diz Eliane, destacando que o medicamento manipulado de forma inadequada e sem higiene, pode estar contaminado, inclusive por agrotóxicos, e causar prejuízos à saúde como taquicardia, intoxicação, náuseas e vômito.

— É fundamental esclarecer que o uso de substâncias ricas em THC com finalidade medicinal não é ilegal no Brasil. Classificar a licitude de um produto ou do seu porte segundo sua concentração de THC é um equívoco. O uso medicinal da cannabis ainda é objeto de muita desinformação e preconceito — afirma Tarso Araújo, diretor-executivo da Associação Brasileira da Indústria Canabinoide, destacando que, apesar de bem-vindas, as novas tecnologias forenses para testar o óleo de canabidiol não podem contribuir para aumentar a repressão e desrespeitar as regras já existentes sobre o uso da substância. — O uso do kit pela polícia como único instrumento para avaliar a finalidade da aplicação do medicamento pode levar a mais situações de constrangimento indevido aos pacientes.

Em João Pessoa, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança tem autorização judicial para o plantio de cannabis. No Rio de Janeiro, a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) também já atende a mais de 1,4 mil associados em Paty do Alferes.

O pontapé inicial para o uso da maconha medicinal no país foi em janeiro de 2015, quando o canabidiol saiu da lista de substâncias proibidas pela Anvisa e o uso como remédio controlado foi autorizado.

Tumor diminuiu

Em 2017, Raul Thame, de 39 anos, viu no óleo da cannabis uma chance de salvar a mãe, Gizele Thame, de 64. Com um tumor de 1,2 cm na hipófise, ela sentia dores e dificuldade para enxergar. O inchaço não parava de crescer. A única opção seria uma cirurgia invasiva, rejeitada por ela. Em depressão, já havia escrito até cartas de despedida. Gizele resistiu à ideia no início. Mas o tratamento artesanal não só mudou o quadro, como fez regredir a doença. Hoje, mede 0,5cm. Há três anos, Raul conseguiu na Justiça, em Santos, o salvo-conduto para plantar.

— Há a dificuldade do mercado paralelo, por faltar regulamentação. Muitos produzem de qualquer jeito, outros vão e compram na inocência. É uma ilusão, porque não há a garantia da continuidade do tratamento: a cada vez pode vir diferente, você nem sabe o que está tomando. Às vezes, é a única forma de acesso que a pessoa tem, mas não deveria ser assim — alerta Raul.