Título: O passado turvo de Aristide
Autor: Moises Naim
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, Internacional, p. A12

Documentos oficiais dos EUA detalham depoimentos de autoridades do antigo governo que apontam envolvimento do ex-presidente com tráfico de drogas

Desde que uma rebelião nacional obrigou que o então presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, saísse do país, em fevereiro de 2004, procuradores federais de Miami, nos Estados Unidos, vêm sistematicamente procurando e prendendo alguns dos altos membros do ex-governo, acusados de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. Até agora, os promotores americanos já conseguiram a confissão de culpa de quatro ex-autoridades policiais - incluindo o antigo diretor da Polícia Nacional Haitiana e ex-chefe de segurança do palácio presidencial , além de um senador do partido de Aristide, o Lavalas. Entre as acusações, está o recebimento de suborno de traficantes colombianos e haitianos.

No começo do mês, os procuradores sofreram uma derrota, quando um júri absolveu, de alegações similares, o ex-czar da luta contra os narcóticos do governo deposto de Porto Príncipe. Mas a Procuradoria continua defendendo ''um combate agressivo contra estas pessoas''. O que levanta uma questão: Estão os promotores tentando um indiciamento contra o próprio Aristide?

Porta-vozes da Procuradoria dos EUA sempre declinam comentar as suspeitas de que o ex-presidente seja um alvo da Justiça. Mas as toneladas de cocaína que cruzaram as fronteiras do Haiti e dos EUA durante o segundo mandato de Aristide (2001-2004) falam por si mesmas: antes de sua queda do poder, a U.S. Drug Enforcement Administration (DEA) classificou o Haiti entre os três maiores países traficantes do mundo. Mas o ex-líder, hoje em exílio na África do Sul, nega consistentemente qualquer conhecimento ou envolvimento no tráfico de narcóticos ou em corrupção relacionada a drogas. E, por enquanto, nenhuma evidência foi apresentada em Corte que o implique diretamente em tais atividades.

Ainda assim, no julgamento que terminou no dia 7, o ex-chefe de segurança do palácio presidencial, Oriel Jean, testemunhou que Aristide deu seu aval pessoal para livre trânsito do empresário haitiano Serge Edouard - que mais tarde foi indiciado por tráfico. E de acordo com um documento do DEA, datado de 3 de maio de 1994, obtido pela Newsweek, Aristide teria aceitado pagamentos de traficantes desde seu primeiro mandato, em 1991.

Em abril de 1994, agentes da DEA interrogaram um informante colombiano no gabinete da Procuradoria em Bogotá. O negociador de narcóticos Juan Molina, que havia abandonado o crime, contou que Aristide recebeu dinheiro em pelo menos duas ocasiões, de representantes do ''rei'' do Cartel de Medellín, Pablo Escobar. A primeira remuneração, de US$ 600 mil, teria sido feita em dezembro de 1990, quando o haitiano era candidato à presidência. O dinheiro foi dado em troca da garantia de que, se ganhasse as eleições, o Haiti continuaria a ser usado como ponto de baldeação para a cocaína que seguia para demais países, como os EUA. Aristide recebeu do próprio Molina um segundo pagamento de US$ 250 mil, em junho de 1991 - quatro meses após tomar posse e três meses antes de ser deposto por um golpe militar.

Na época do documento da DEA, o governo de Bill Clinton tentava negociar junto aos generais que haviam destituído o haitiano seu retorno do exílio em Washington. As pesadas acusações de Molina nunca deram em nada. A DEA pediu para interrogar Aristide em sua casa, em Georgetown, mas foi desaconselhada pelo Departamento de Justiça, que justificava que as alegações do informante não eram críveis.

Uma década depois, atrás do quê os federais ainda estão? Em uma audiência em Miami, dias antes do ex-líder ser mais uma vez retirado do poder, em 2004, o traficante haitiano Jacques Ketant afirmou que pagou US$ 500 mil ao então presidente, pela permissão para pousar aviões carregados de cocaína no país caribenho. Também confirmou que Edouard tinha salvo-conduto. O fato é que sobrancelhas se arquearam no Haiti e nos EUA quando saqueadores descobriram US$ 350 mil em dinheiro no porão da casa de Aristide, em Porto Príncipe, um dia depois que ele deixou a nação.

Procurado insistentemente pela Newsweek, Aristide vem declinando os pedidos de entrevista. Mas seu advogado, Ira Kurzban, atribui todas as denúncias contra seu cliente a uma ''campanha falsa, difamatória e desinformativa'' do governo de George Bush.

''O presidente Aristide nunca esteve envolvido em qualquer atividade ilegal no Haiti'', sustentou Kurzban, em um comunicado. ''As evidências do DEA contra ele consistem unicamente em rumores de conhecidos e confessos traficantes''.

O Haiti se prepara para, no fim do ano, ter as primeiras eleições desde que o ex-líder foi derrubado. Mesmo no exílio, Aristide aparece como um força política consistente e ainda planeja retornar ao poder. Resta saber se volta para Porto Príncipe ou se vai se sentar no banco dos réus nos EUA.