Valor Econômico, v. 20, n. 4963, 19/03/2020. Finanças, p. C5

‘BC não se deu conta do tamanho do choque’

Entrevista:  Economista-chefe da Garde Asset Management 


Em um momento de tanta preocupação sobre os rumos da economia, a maior contribuição do Banco Central seria proporcionar mais estímulo monetário para atenuar a quebra de atividade e, assim depois do choque, preparar terreno para uma retomada no futuro. No entanto, a instituição decepcionou. Anunciou ontem um corte de apenas 0,50 ponto percentual da Selic, de 4,25% para 3,75%, e sinalizou que não quer cortar mais, mesmo num cenário de inflação baixa e risco de recessão global, devido aos efeitos da pandemia de coronavírus.

“O Banco Central não se deu conta ainda do tamanho do choque que está acontecendo na economia brasileira”, alerta o economista-chefe da Garde Asset, Daniel Weeks. Tamanha cautela da autoridade monetária deixa seu discurso até anacrônico. “A gente poderia ver esse tipo de manifestação, essa mensagem, um mês atrás, quando a gente achava que o choque seria uma marolinha. Agora estamos vendo o risco de a atividade perder muita força, com paralisação dos principais centros urbanos”, acrescenta o economista.

Até por isso, ele acredita que o Banco Central terá de voltar atrás em sua comunicação. “Acho quase impossível que a realidade não se imponha. Assim, o Banco Central vai ter de cortar 0,5 ponto ou até mais na próxima decisão”, afirma o economista, que traça um cenário bastante preocupante sobre a economia por causa da pandemia de coronavírus.

“Os efeitos são mais duradouros. A gente pode estar conversando sobre um PIB global que será negativo este ano. Não conseguimos ainda ver o fundo do poço. Temos que trabalhar com cenário de guerra.”

Valor: O Copom foi cauteloso demais em sua reunião?

Daniel Weeks: Minha expectativa era de corte de 1 ponto percentual. Me surpreende ter cortado 0,50 ponto e ter sinalizado manutenção. O Banco Central não se deu conta ainda do tamanho do choque que está acontecendo na economia brasileira. É um choque externo, mas tem um efeito significativo na economia doméstica. O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, já anunciou a suspensão das atividades de boa parte do comércio na cidade. Obviamente, a política monetária não tem poder de reverter o choque ou de evitar a quebra da atividade que vamos ver por causa de questões sanitárias. As medidas de segurança em São Paulo e no Rio de Janeiro vão se intensificar nas próximas semanas. Mas a maior contribuição do Banco Central seria proporcionar mais estímulo monetário para atenuar o que vamos ver de quebra de atividade, para famílias e empresas, e permitir que, depois do choque, a recuperação seja mais forte. Aí eu acho que o Banco Central vai na contramão do mundo, porque as autoridades lá fora estão se desdobrando para deixar a política monetária mais expansionista, dado o tamanho do choque. Já nós temos espaço para cortar juros: a inflação está abaixo da meta e o choque vai ser recessivo e desinflacionário.

Valor: Dada a situação, qual é sua avaliação sobre a postura do Banco Central?

Weeks: O próprio ministro Paulo Guedes fala que tem pouco espaço fiscal e muito espaço monetário. Estamos usando até o fiscal que não temos, porque é uma questão emergencial. Mas o Banco Central decepciona em reagir. É um comunicado meio anacrônico. A gente poderia ver esse tipo de manifestação, essa mensagem, um mês atrás, quando a gente achava que o choque seria uma marolinha. Agora estamos vendo o risco de a atividade perder muita força, com paralisação dos principais centros urbanos.

Valor: O Copom pode ter de voltar atrás no comunicado?

Weeks: Acho quase impossível que a realidade não se imponha. Assim, o Banco Central vai ter de cortar 0,5 ponto ou até mais na próxima decisão. Ele fez menção ao fiscal. Acho que teve um desconforto com a questão do BPC [quando o Congresso decidiu derrubar o veto presidencial sobre a ampliação do Benefício de Prestação Contínua], que levou a uma piora no sentimento no mercado. Mas vimos depois a decisão do TCU [Tribunal de Contas da União, que reverteu a decisão do Congresso], a posição do Mansueto e do Maia, numa tentativa de apagar o incêndio. O governo vai piorar o fiscal do ano, mas por um fator pontual e emergencial. Não é mudança de cenário.

Valor: E a questão da piora das condições financeiras?

Weeks: As condições financeiras pioraram, porque o mundo piorou. A inclinação da curva de juros aumentou tanto por causa das condições globais. Não é uma questão do efeito do juro baixo na depreciação do câmbio. O câmbio está onde está não por causa do diferencial de juros, mas porque teve um movimento de aversão ao risco gigantesco. Acho que está misturando as coisas aí.

Valor: O comunicado afeta a credibilidade do BC, dado que a mensagem fica que xeque?

Weeks: Num momento drástico, com um governo alinhado para combater a crise que não vai ser trivial, o BC decepciona um pouco. A autoridade monetária tem espaço, mas não usa suas armas.

Valor: Qual é sua avaliação sobre a estratégia para o câmbio?

Weeks: Existe uma demanda de dólar no mundo inteiro e a gente está sentado em US$ 360 bilhões [em reservas]. O BC está sendo leniente. Poderia fornecer mais liquidez e sinalizar que tem munição para agir. Não precisa se amarrar em ração diária, mas indicar que vai continuar intervindo de maneira significativa para manter o bom funcionamento do mercado cambial em meio a uma aversão ao risco tão grande no mundo. Acho ruim ter essa falta de leitura melhor do tamanho desse choque que vai ser desinflacionário e recessivo.

Valor: Começam a surgir as primeiras projeções com PIB negativo. Esse deve ser o cenário mais provável para a economia?

Weeks: Qualquer tentativa de projeção é totalmente vazia. É tudo um chute muito grande. Mas de cara dá para entender que o que está acontecendo com a atividade é muito mais grave ou até pior do que houve, por exemplo, na crise de 2008/2009. É de se esperar que seja um cenário de PIB pior. E existe uma complacência do mercado de não assumir sua ignorância sobre o que vai acontecer com atividade aqui e lá fora. Saíram dados de China no fim de semana e tem gente revisando PIB chinês para 2% ou para 3%. E parece que vai ser bem pior. Não é que estejamos perdendo fevereiro e que vai voltar em março. Uma coisa que preocupa é que não parece ser um “lockdown” de duas semanas que fará com que tudo volte ao normal. Parece que o impacto de se evitar contato social vai se prolongar por um tempo grande. Um exemplo disso é a China que conseguiu controlar a disseminação do vírus, mas agora vai colocar em quarentena todos os visitantes. Os efeitos são mais duradouros. A gente pode estar conversando sobre um PIB global que será negativo este ano. Não conseguimos ainda ver o fundo do poço. Temos que trabalhar com cenário de guerra.

Valor: Como você avalia as medidas anunciadas pela equipe econômica para fazer frente à crise?

Weeks: A resposta tem sido na direção correta, mas ainda é insuficiente. Não sei se dá para culpar de cara o Ministério da Economia ou o Banco Central, uma vez que o cenário vem se deteriorando fortemente. Tanto aqui quanto, principalmente, lá fora. Veja a evolução da doença na Itália. Tinha 400 casos na semana passada e hoje tem mais de 30 mil. Muita coisa mudou neste mês de março, acho normal que o governo precise de um tempo para organizar as ideias e as medidas.

Valor: O que precisa ser feito?

Weeks: Já saíram algumas medidas. E acho que tem três coisas a serem feitas pelo Ministério da Economia. Como é um problema sanitário, de saúde, tem que aumentar recursos para área de saúde, ter um plano de saber onde precisa de mais hospitais, o que precisa ser feito. Tem que canalizar dinheiro para saúde. Uma segunda medida é canalizar dinheiro para as pessoas que vão ficar em “lockdown”. Quem ficará desassistido não é o trabalhador em “home office”, não é o aposentado, é o informal, que é muita gente. Esse “coronavoucher”, acho superpositivo, é um jeito de o governo transferir renda para essas pessoas. O trabalho deles vai desaparecer. E isso para pequenas e médias empresas também. O terceiro foco, e aí vai ter que usar os bancos públicos, é entuchar crédito para evitar que empresas quebrem, como está sendo feito na Europa, nos Estados Unidos. Por mais que a gente tenha levado esse tempo todo para desarmar os bancos públicos, eles servem para isso. Tem que ajudar as empresas a atravessarem esse período. Nesse sentido, o Banco Central pode ajudar também soltando o compulsório.

Valor: Quem tem que comandar esse conjunto de medidas?

Weeks: O Executivo tem que fazer com que a expansão fiscal e parafiscal seja temporária, e não algo permanente. Vamos colocar assistência social para quem ficar sem renda por alguns meses, mas isso não pode entrar no Orçamento para sempre. Não pode desativar o teto de gastos. Se for fazer esses gastos como tem que fazer - lembrando que saúde não está no teto -, tem que aprovar como gastos extraordinários. O teto tem programado que em tempos de calamidade você pode gastar mais. É pior do que foi em 2008 e 2009. O governo tem que puxar essa discussão porque, se for o Congresso, o medo é que você possa ter outra bola nas costas como foi BPC, que poderia ter resultado num gasto adicional de R$ 20 bilhões. Então, o governo tem que comunicar isso ao mercado. Tem que adiar a consolidação fiscal este ano, porque vivemos algo super excepcional. Provavelmente a gente vá ver o déficit do ano duplicar, mas vai ser bem compreendido. O mundo inteiro tem que fazer isso. Tem que salvar empresas, dar assistência à população. Qualquer medida será inócua para a atividade econômica por enquanto. O importante é suavizar o impacto do ponto de vista social e empresarial, não deixando empresas quebrarem. Se conseguir atravessar esse período sem deixar pessoas passarem fome e empresas quebrarem, a retomada pode ser mais fácil. Se não fizer nada, na volta, as empresas não estarão lá. Não tem plano algum anticíclico que ajude a combater a queda do PIB. Mas é possível fazer com que, passada a tormenta, tenhamos uma retomada mais rápida.