Valor Econômico, v. 20, n. 4964, 20/03/2020. Política, p. A6

Declaração abre ferida na relação, dizem especialistas

Hugo Passarelli


Apesar de, por ora, estarem concentradas no campo retórico, as críticas do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) à China por causa da crise do novo coronavírus representam uma ameaça à relação bilateral com o Brasil, dizem especialistas.

Há divergências se uma possível escalada das tensões afetaria mais o comércio ou os investimentos chineses por aqui. Mas, qualquer que seja o desfecho, o sinal é negativo em um momento em que o Brasil provavelmente enfrentará uma recessão técnica no primeiro semestre e, portanto, deveria se valer dos parceiros para engatar uma retomada da atividade.

Depois de criticar a China pela disseminação do vírus, Eduardo voltou a se pronunciar, procurando esclarecer que se referia ao governo e não ao povo chinês (ver nesta página). O vice-presidente, Hamilton Mourão, também disse que as afirmações não representam uma posição de governo sobre o tema.

“A perda da percepção de que o Brasil não é um parceiro estratégico e confiável da China levaria a uma perda colossal nas exportações”, afirma José Pio Borges, presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), destacando que esse cenário ainda é improvável na conjuntura atual.

Segundo ele, apesar de a maior pauta exportadora do Brasil para a China ser a agrícola, o petróleo também tem ganhado relevância. “A China pode comprar petróleo da Rússia, Oriente Médio, Estados Unidos e a única forma de o Brasil crescer neste mercado é se colocando como um parceiro. Além disso, para todos os produtos que exportamos para lá temos concorrentes que procurem de toda a forma manter a agenda alinhada”, afirma Pio Borges.

Após a retração econômica esperada para este ano, uma parceria saudável é ainda mais relevante, diz o presidente de conselho do Cebri. “Se há alguma esperança de retomada de crescimento nos próximos anos ela terá se der baseada em exportações e investimentos em  infraestrutura, ambas com relevante papel da China”, afirma.

O professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel, vê mais impactos nos projetos chineses no Brasil do que nas exportações, não necessariamente restritos ao setor de infraestrutura. “O ideal é que o presidente Bolsonaro viesse a público para acalmar os ânimos. Esse episódio abriu uma ferida que achavam estar curada depois das eleições”, afirma.

Uma preocupação extra, lembra, é o fato de que a China, nos próximos meses, será um ator fundamental no fornecimento de equipamentos médicos fundamentais à contenção do coronavírus.

Segundo Stuenkel, o recomendado a partir de agora é cautela no alinhamento automático com os Estados Unidos em questões diplomáticas. “A relação Estados Unidos-China piorou muito, o Brasil precisa tomar mais cuidado em manter as boas relações com os dois do que um ano atrás. O maior desafio nos próximos dez anos vai ser achar o caminho certo no meio da tensão que vai marcar o sistema internacional”, afirma.

Outro ponto de atrito entre as diplomacias brasileira e a chinesa pode ocorrer na definição da tecnologia para implementação da rede 5G, dizem os especialistas. “Se o Brasil, após uma declaração dessas, vier a ter uma posição política - e não técnica - em relação ao 5G, sem dúvida será um passo que comprometerá as relações bilaterais”, afirma Pio Borges.