Título: ESCRAVIDÃO: Sudão ganha aval americano
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, Internacional, p. A13

Apesar de denúncias de que a prática é apoiada por Cartum, Departamento de Estado eleva status de regime islâmico

Para o Departamento de Estado americano, o governo do Sudão tem feito grandes esforços para reduzir e erradicar a escravidão moderna no país, responsável pelo tráfico de pessoas, sobretudo mulheres e crianças, submetidas a trabalho forçado, abuso sexual, recrutamento paramilitar e servidão. Em setembro, o Escritório de Combate ao Tráfico de Pessoas (TIPS, na sigla em inglês), submetido à secretária de Estado, Condoleezza Rice, elevou o status de exploração do país do nível III ¿ o mais baixo e que implica em sanções econômicas e de ajuda humanitária ¿ para o II. A decisão, no entanto, enfureceu organizações civis que trabalham no monitoramento da crise humanitária sudanesa, que já dura 20 anos. A conclusão de Washington baseia-se em um relatório feito anualmente que avalia o ¿comércio¿ de pessoas em todo mundo, a partir de condições estipuladas pelo Ato de Proteção a Vítimas de Tráfico e Violência, aprovado pelo Congresso americano em 2000. De acordo com o texto, as nações são classificadas em três níveis, de acordo com o cumprimento ou não das metas previstas pelo documento para a erradicação da escravidão.

Até junho, o Sudão encontrava-se no pior nível, junto a países que não satisfazem requisitos sociais mínimos para combater a exploração. Entre eles estão Bolívia, Equador, Venezuela, Camboja, Cuba, Coréia do Norte, Togo e Arábia Saudita.

Há um mês, o país passou ao nível II, status intermediário de luta contra a servidão e no qual se encontram Brasil, Suíça, Israel, Chile, Hungria e Grécia. De acordo com um comunicado assinado por Condoleezza e o embaixador do TIPS, John Miller, o governo de Cartum fez, em 90 dias, ¿significativos esforços¿ contra o tráfico de pessoas, tais como ¿implantação de novas políticas, prisão de seqüestradores, aprovação de leis antitráfico e proteção a vítimas de abusos¿. Nada além de promessas, para a Campanha do Sudão ¿ que reúne inúmeras entidades:

¿ O país foi promovido por ofertas e não por ações, como em toda negociação de paz. É sempre a mesma coisa. O governo não trabalha para evitar as violações ¿ afirmou ao JB Faith McDonnell, diretora do Programa de Liberdade Religiosa para um Novo Sudão.

Segundo Faith, Cartum mudou a lei que exigia o registro de ocorrência policial antes do atendimento médico em casos de estupro. A medida, para ativista, não reduz a violência:

¿ Não afetará a maioria dos escravos sexuais, sem acesso a tratamento médico e, principalmente, a uma polícia neutra e honesta ¿ criticou. ¿ As vítimas de Darfur (região a Oeste do país, assolada pelo genocídio da guerra civil) têm boas razões para suspeitar de policiais envolvidos em seqüestros e abusos sexuais. A conclusão do Departamento de Estado americano é um erro grosseiro, uma traição às reais causas políticas e sociais da escravatura no Sudão ¿ acrescentou.

O relatório considera a escravidão um produto dos conflitos intertribais e subestima a participação do governo na instituição da prática. A ONG Solidariedade Cristã Internacional (CSI, na sigla em inglês) acusa o Departamento de Estado de utilizar-se de eufemismos para tratar a questão. Em muitas passagens, a palavra `seqüestrado¿ substitui `abusado¿. Além disso, o documento, defende a entidade, sugere que ¿freqüentemente¿ a vítima passa a fazer parte da família e da tribo do seqüestrador. E, somente em ¿alguns¿ casos, é forçada ao trabalho e à exploração sexual.

Nas palavras de John Miller, responsável pelo relatório, o ¿objetivo não é punir, mas estimular a ação do governo para acabar com a escravidão dos dias atuais¿. O embaixador do TIPS foi procurado pelo JB, mas não estava disponível para entrevista por motivo de viagem, não tendo substituto.

¿ A questão é que o regime islâmico do general Omar Hassan Ahmad al Bachir (no poder desde 1989) está diretamente ligado à escravidão no país. Al Bachir deve estar satisfeito com a pesquisa americana e tem permissão agora interpretá-la como a confirmação de que um crime contra a humanidade pode ser cometido impunemente ¿ avaliou John Eibner, diretor da CSI.

É sabido que o governo apóia milícias islâmicas responsáveis pela escravização de negros, em especial mulheres e crianças. A própria ONU, em comunicado da Comissão Internacional de Inquérito para Darfur, lançado em janeiro deste ano ¿ mês em que a guerra civil do Sudão terminou oficialmente, com 2 milhões de mortos e um acordo de paz entre a Frente Nacional Islâmica e o Exército de Libertação do Povo Sudanês ¿, afirma que a escravidão é traço marcante das ações do Exército nacional e das facções sustentadas por Al Bachir.

O número de escravos no país é incerto: dependendo da estimativa, varia de 6 mil a 200 mil. Segundo a Solidariedade Cristã, Cartum autorizou a pesquisa somente em certas áreas, restringindo um maior estudo que compreendesse todo o país, o que tira a credibilidade do documento americano. A ONG afirma ter libertado mais de 13 mil escravos desde 1995. Muitas vezes pagando US$ 50 por pessoa.

Na opinião de Keith Roderick, diretor da Campanha para o Sudão, os EUA têm uma postura dupla em relação ao país africano:

¿ De um lado, acusam o governo de cumplicidade com o genocídio. De outro, premiam o regime, abrindo espaço para que não haja esforços substanciais para a erradicação de abusos no país ¿ observou, de Washington.

Em carta enviada na semana passada a Condoleezza, a Campanha pede que a elevação do status do país seja revista. As organizações-membro consideram a decisão falha e desastrosa ¿no momento em que uma nova coalizão de paz no governo de Cartum apresenta renovadas oportunidades de erradicação da escravidão¿.

As entidades signatárias do texto despedem-se lembrando que a paz só pode ser alcançada com verdade e justiça. Esboçam ainda o que acreditam ser o interesse americano:

¿A paz no Sudão nunca estará garantida enquanto interesses de escravos e outras vítimas continuarem a serem sacrificadas por objetivos de certas políticas externas, como a preservação da unidade islâmica do governo e a cooperação de um Estado designado como `terrorista¿ na luta contra o terror¿.

Na sexta-feira, o alto comissário das Nações Unidas para Refugiados, Antonio Guterres, também alertou que o mundo tem pouco tempo para tentar restaurar a paz no país, depois de semanas de ataques sucessivos a campos de refugiados.

¿ Está tudo saindo do controle dos dois lados. Estamos próximos de uma tragédia ainda maior em Darfur. O momento crucial é de agora até o fim do ano ¿ afirmou, lembrando que nos últimos 36 meses, 2 milhões de sudaneses tornaram-se refugiados.