O Globo, n. 32584, 23/10/2022. Política, p. 4

O poder da mentira

Marlen Couto
Bernardo Mello
Ana Flávia Pilar


A escalada da guerra digital do segundo turno tem se refletido nos conteúdos com maior circulação nas redes sociais. Um levantamento feito pelo GLOBO a partir das postagens em português sobre política com maior engajamento no Facebook e no Instagram nas três semanas de enfrentamento direto entre o ex-presidente Lula (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) revela que publicações com fake news têm até ultrapassado o alcance de postagens sem desinformação. No grupo dos dez conteúdos mais virais, há seis mentiras, que atingiram 9,8 milhões de interações (curtidas, comentários e compartilhamentos), enquanto os outros quatro posts relacionados ao pleito somaram 7,6 milhões.

Os dados foram reunidos a partir do CrowdTangle, plataforma de monitoramento de redes da Meta, controladora das duas plataformas. Em um universo maior, de 80 publicações, a capacidade de os dados falsos se espalharem também fica evidente: em média, posts desinformativos arregimentaram 868 mil interações, contra 965 mil dos posts que trazem discursos políticos sem distorções. O emparelhamento também ocorre nos vídeos: os que trazem mentiras chegaram a 76,4 milhões de visualizações, número próximo às 76,7 milhões de visualizações daqueles sem fake news. A artilharia vem de ambos os lados da disputa, mas o campo bolsonarista prevalece na lista de principais disseminadores: só o perfil de Bolsonaro tem 14 publicações no ranking.

Foi o que ocorreu, por exemplo, em transmissões ao vivo, realizadas no Instagram e no Facebook, nas quais o presidente recebeu o apoio dos governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB). Ao lado de Zema, Bolsonaro evocou uma fake news largamente difundida na campanha de 2018, de que o Ministério da Educação teria distribuído um “kit gay” em gestões do PT — a existência foi desmentida à época pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com Garcia, o presidente afirmou que sua gestão teria “corrupção zero”, apesar de investigações terem apontado indícios de um esquema de solicitação de propina envolvendo pastores ligados ao ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, exonerado após o caso vir à tona. Bolsonaro também teve postagens amplamente compartilhadas nas quais alega que Lula teria o apoio de facções criminosas, por ter feito ato de campanha no Complexo do Alemão, no Rio. Outra postagem nesse sentido partiu da deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP), que afirmou em vídeo publicado no Facebook, no dia 13, que um boné usado por Lula na agenda de campanha, com a sigla CPX, faria referência a uma facção. A sigla, na verdade, é uma abreviação usada por moradores para se referir ao Complexo do Alemão. A avenida onde Lula fez a carreata, diferentemente do que foi sugerido por Bolsonaro — “nem a polícia consegue acessar”, disse —, não tem presença ostensiva de pessoas armadas. Zambelli também difundiu a fake news de que o PT teria manifestado intenção de implementar “banheiros unissex”

— Bolsonaro usou o mesmo tom em uma live no início da semana. Em outra publicação, o candidato à reeleição também diz que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin foi advogado do MST, alegação já desmentida pelo tribunal. Procurados, Bolsonaro e Zambelli não responderam.

Collor vira arma

Na campanha do ex-presidente Lula (PT), o deputado federal André Janones (Avante-MG) aparece como autor de três publicações entre as que mais viralizaram no Facebook com desinformação. Na postagem com maior repercussão — uma transmissão ao vivo, no dia 14, que somou 645 mil interações —, Janones mencionou uma suposta possibilidade de o ex-presidente Fernando Collor (PTB) ser nomeado para um ministério caso Bolsonaro se reeleja. O comentário faz referência a postagens feitas pelo próprio Janones no Twitter, nas quais o parlamentar usou trechos descontextualizados de uma entrevista de Bolsonaro para dar a entender que o presidente teria manifestado essa intenção. Posteriormente, ele apagou os tuítes, mas manteve no ar a live que menciona o caso de forma distorcida. Janones também sugeriu, em outras transmissões ao vivo, que Bolsonaro teria “paquerado” menores de idade e que o presidente teria envolvimento com rituais satânicos. Janones não respondeu aos contatos da reportagem. A Meta firmou uma parceria com o TSE e afirma reduzir o alcance de postagens classificadas como falsas por agências de checagem. A empresa, porém, não envia conteúdo de políticos eleitos para a revisão, caso da maioria das postagens detectadas. Outra ação para o pleito foi incluir um rótulo específico para o Brasil em postagens sobre eleições com direcionamento ao site do TSE. No WhatsApp, dados da empresa de análise de dados Palver registram crescimento da “guerra suja”.

Os números, provenientes de um acompanhamento em 15 mil grupos, mostram que houve alta de 238%, em média, nas fake news contra Lula, do primeiro para o segundo turno — a média era de 45 menções a cada 200 mil mensagens antes do dia 2 e foi para 152 depois da votação. Já a desinformação contra Bolsonaro é 16 vezes maior — passou de uma média de 7 mensagens acada 200 mil para um patamar de 132. Entre os principais focos de ataques a Lula estão sua associação à defesa de assaltantes e traficantes, à implantação do comunismo eà legalização do aborto. Já Bolsonaro é vinculado ao canibalismo e à maçonaria. A participação de Collor em um novo governo e o caso das meninas venezuelanas também aparece entre as mensagens mais compartilhadas. Os dados da Palver apontam que os picos de fake news contra Bolsonaro coincidem como crescimento de citações a Janones nos grupos.

De uma plataforma a outra

Diretor de estratégia da Palver, Luis Fakhouri destaca que, apesar de a desinformação afetar os dois candidatos a presidente, os grupos pró-Bolsonaro têm mais capilaridade e organização no WhatsApp. Ele chama atenção ainda para o crescimento da circulação de vídeos oriundos de plataformas como TikTok e Kwai, que têm sido apontadas como menos rigorosas na moderação de conteúdo:

— As fake news estão atreladas a valores morais e buscam imputar medo com relação ao candidato adversário. Esses grupos públicos funcionam como fontes para se abastecer com desinformação e a retransmitir para conversas com amigos e grupos de familiares. Parece haver ainda uma transferência de conteúdos de outras redes, em especial do TikTok. Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, Tatiana Dourado avalia que algumas táticas permitiram até aqui que conteúdos falsos escapassem das determinações da Justiça Eleitoral. Atores políticos e demais usuários das redes sociais passaram a compartilhar publicações antigas que não foram alvos de ações da Justiça e a comentar as decisões de moderar o conteúdo falso, além de resgatar reportagens relacionadas aos temas em debate.

— Mesmo com uma série de medidas da Justiça Eleitoral no enfrentamento à desinformação, com grandes avanços em termos de moderação de conteúdo e distribuição de notícias verdadeiras, a transmissão de conteúdos enganosos continuou e até se avolumou. Eles são produzidos até pelo contexto de radicalização política, que reverbera na produção de conteúdo nas redes ena forma como as campanhas operam.