Valor Econômico, v. 20, n. 4963, 19/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2

Limites da política de gestão do estoque regulatório
Sérgio Guerra e Natasha Salinas


No dia 3 deste mês entrou em vigor o Decreto nº 10.139, de 2019, que dispõe sobre a revisão e consolidação de atos normativos de entidades da administração pública federal. O decreto, conhecido como “revisaço”, estabelece prazos para que órgãos públicos revoguem expressamente normas tacitamente revogadas ou com efeitos exauridos e que aprimore, por meio das técnicas de revisão e consolidação, as normas que merecerem permanecer em vigor.

Essas normas deverão ser renumeradas sequencialmente e serão editadas sob a forma de: (i) portaria, (ii) resolução ou (iii) instrução normativa, a depender do conteúdo e do órgão editor da norma. O decreto também determina que cada entidade terá o prazo máximo de quatorze meses para concluir o processo de revisão e consolidação de suas normas.

O “revisaço” é um mecanismo indispensável para conter incerteza e imprevisibilidade regulatória. Salvo casos isolados de consolidação anual obrigatória (v.g. artigo 212, Código Tributário Nacional), não havia mecanismos que certificassem a vigência de normas infralegais sobre um determinado assunto ou setor regulado. Não apenas cidadãos, mas os próprios agentes públicos ficam inseguros quanto à vigência dos atos regulatórios a que devem se submeter ou aplicar. Normas sobre um mesmo tema, via de regra, encontram-se esparsas em diversos atos editados por um mesmo órgão e, não raras vezes, por órgãos reguladores distintos.

Também inexiste uniformidade sobre os ritos, formas e nomenclaturas atribuídos às normas. Estudo realizado com apoio da Escola de Administração Fazendária, em 2012, verificou que a Secretaria da Receita Federal possuía em seu estoque regulatório 79 modalidades diferentes de normas.

Nesse contexto, é inegável que a revisão e consolidação dos atos normativos é de suma importância para a sociedade brasileira. Contudo, há certos pontos a serem examinados quanto aos efeitos retroativos e prospectivos da revisão.

Experiências internacionais bem-sucedidas de gestão do estoque regulatório privilegiam a avaliação de impacto restrospectiva para fins de revisão e revogação de normas. O Decreto nº 10.139, de 2019, no entanto, não previu essa possibilidade. A esse respeito, cabe mencionar que as leis que institucionalizaram a análise de impacto regulatório (AIR) no Brasil - a Lei Geral das Agências Reguladoras Federais e a Lei Geral das Agências Reguladoras Federais e a Lei de Liberdade Econômica, incidente sobre todas as entidades da administração pública - previram, apenas, o uso prospectivo desse mecanismo. Ou seja, a AIR deve ser obrigatoriamente adotada na edição de novos atos normativos, não sendo exigida para a revogação ou a revisão das normas em vigor.

Observa-se, no entanto, que uma revisão adequada do estoque regulatório pressupõe que o regulador faça uma análise não só prospectiva - alcançando novos atos -, mas, sobretudo, retrospectiva dos efeitos, incluindo os custos e benefícios, da norma que se pretende rever. O potencial de uma AIR retrospectiva, ou seja, realizada depois que a norma já surtiu efeitos, é mais vantajosa do que uma AIR prospectiva. Isso porque na AIR retrospectiva os custos e benefícios a serem avaliados são reais, e não apenas estimativos.

A AIR tem como um de seus principais fundamentos o incremento de racionalidade na atividade regulatória. A simplificação pretendida pelo “revisaço” teria, portanto, muito a ganhar, caso exigisse avaliação retrospectiva do estoque regulatório vigente. Para isso, no entanto, é exigido tempo. Em todas as experiências internacionais bem-sucedidas, costuma-se atribuir tempo suficiente para que as agências construam planos e cronogramas adequados de revisão do seu estoque regulatório. No Canadá, esse plano é quinquenal, ao passo que nos Estados Unidos o processo de revisão é estabelecido de forma gradual e permanente.

No Brasil, também há experiências bem-sucedidas de agências reguladoras na gestão do seu estoque regulatório. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, desenvolveram bem-sucedidos programas no decorrer dos últimos anos (e não meses), promovendo verdadeiras “guilhotinas regulatórias”, mediante a revogação de normas em desuso e simplificação das normas existentes. Essas agências, no entanto, não fizeram uso extensivo da AIR retrospectiva e de mecanismos de participação social, os quais demandam capacidades institucionais, recursos e incentivos ainda por serem criados.

Desse modo, tem-se um cenário no qual, de um lado, a revisão e consolidação normativa ora instituídas se apresentam como importantes passos na implementação de mecanismos voltados à segurança jurídica e previsibilidade regulatória - elas têm o potencial de afastar normas anacrônicas e reduzir problemas de fragmentação regulatória -; de outro, é justo concluir que os ganhos poderiam ser mais significativos se a política de gestão do estoque regulatório também contemplasse a aplicação da AIR retrospectiva, que permitiria aos órgãos reguladores tomar decisões mais bem fundamentadas, inclusive contando com ampla participação da sociedade.

Sérgio Guerra e Natasha Salinas são, respectivamente, professor titular da FGV Direito Rio e professora adjunta da FGV Direito Rio

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