Título: Um Brasil sem fome e sem armas
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, Opinião, p. A15

O Brasil, ou melhor, os brasileiros, ao comparecerem hoje às urnas para referendarem o Estatuto do Desarmamento, dão mais um passo a caminho da plena democracia e para uma vida mais justa para todos. O referendo é importante não só pelo fato de se saber a real vontade do povo brasileiro, mas também para discutir um tema tão relevante para a paz no mundo. Acredito que o primeiro passo para que a humanidade e todo o planeta viva em perfeita harmonia com a natureza e entre os diversos povos é acabar com as armas.

Hoje nos deparamos com um crescimento vertiginoso da violência, causado principalmente pela fome. As pessoas que passam fome, e não têm os seus menores direitos respeitados, se tornam cegas às razões mais simples da vida. Se nos ativermos aos estudos e pesquisas podemos verificar que a maior parte das armas está concentrada nas mãos das pessoas mais pobres - tanto material quanto intelectualmente - por pensarem que só assim conseguirão se defender melhorar na vida.

Fico impressionado quando vou aos shows de conjuntos como os Racionais MCs, normalmente realizados na periferia das cidades, por notar que mais da metade dos jovens sabe cantar as suas longas letras de músicas. E lá estão eles, dando o recado para a juventude por meio das suas letras de rap ou hip-hop. Os temas dos poemas ''rapeiros'' falam geralmente da violência do cotidiano vivido principalmente pelos jovens das áreas pobres das grandes cidades. E agora o desarmamento também tem sido muito bem lembrado pelos Racionais MCs, já que pode contribuir para salvar vidas perdidas na maior parte inutilmente. É que, de acordo com as pesquisas, a maior parte dos crimes por arma de fogo tem origem em brigas banais, que poderiam ser evitados caso um dos contendores não tivesse uma arma de fogo à mão ou guardada em casa.

No último dia 8, na periferia de Mauá, uma das cidades da região do ABC paulista, a voz de Mano Brown mais uma vez ecoou forte: ''Vocês são contra ou a favor do desarmamento?'' Mais da metade dos jovens levanta as mãos para defender as armas. Brown, então, pede para um dos jovens a favor das armas subir no palco e contar a razão por que assume essa defesa. Nervoso, o rapaz emenda: ''Se os bicos sujos (inimigos) têm o direito de ter arma, nós também temos''. Brown rebate e diz que a violência, na maioria das vezes, atinge gente igual ao seu público ou seus familiares. Ou seja, uma ilusória pretensão à auto-defesa pode acabar num crime sem volta. Normalmente a vítima é o dono da arma, que pensa se defender e não sabe usá-la. Acaba perdendo a arma e a vida.

Assim como eu, Mano Brown - que já andou armado - é mais um defensor do desarmamento, e com grande conhecimento de causa, como ele próprio defende em sua entrevista para o Agora (10.10.2005): : ''O jovem da periferia vê na arma um instrumento para ascender na sociedade de alguma forma, de ganhar respeito, coisa que ele não conseguiria normalmente, ou não da forma que ele queria''... ''O que eu penso é que muitos amigos meus, pessoas de quem eu gostava, poderiam estar vivos hoje, se não fosse a arma. Porque a pressão que a molecada está vivendo vai ser extravasada violentamente, porque eles não são ouvidos. Os anos estão passando, um governo de esquerda já assumiu e era esperança. As coisas estão muito lentas, e a periferia é urgente, precisa das coisas para ontem, e as coisas não estão acontecendo, está muito nebuloso. Os moleques estão inseguros, eles têm pressa, eles querem viver logo, têm ânsia de viver a vida, viver a vida que é vendida, que é oferecida''.

E Mano Brown vai mais longe, sai da periferia para defender o fim das armas para todos: ''Eu não parei para contar, mas eu sinto a falta de vários, vários camaradas que morreram vítimas de violência barata mesmo, de idéia de que poderia resolver trocando idéia. A arma estava fácil. Armamento abundante na mão de pessoas sem estrutura, sem equilíbrio, na mão de pessoas problemáticas. A arma não deveria estar na mão de ninguém, nem a polícia deveria estar armada... Porque, na verdade, o policial também é um cidadão comum, o governador também é um cidadão comum, eles não têm o direito de matar, ninguém tem o direito de matar. Então, tem que desarmar geral, eu sou a favor de desarmar geral, todo mundo''.

É importante respeitar a opinião dos que vão votar não, porque pensam que as pessoas precisam ter o direito de se defender se porventura forem um dia ameaçadas por alguém armado. Mas creio haver um exemplo interessante para pensar em favor de votar sim. Quando entramos no avião concordamos em não andar com armas para proteção de todos os passageiros e da sua tripulação. Creio que quanto mais próximo pudermos estender esse procedimento para toda a sociedade, melhor estaremos nos garantindo de não viver tantas tragédias como as citadas por Mano Brown em suas músicas.