Título: Direitos e liberdade sem armas
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 22/10/2005, Outras Opiniões, p. A11
O povo brasileiro vai expressar sua opinião por meio de referendo, confirmando ou não a decisão do Congresso de proibir o comércio de armas e munição. Muita coisa foi dita e escrita sobre o tema nos últimos dias, verificando-se que, ao lado de observações corretas, foram transmitidas ao povo algumas informações equivocadas. É necessário tecer considerações sobre alguns dos principais argumentos que apareceram nos debates sobre o referendo. Antes de tudo, não existe na Constituição brasileira o direito de ter ou de portar armas. Bem ao contrário disso, a única referência expressa ao uso de armas encontra-se no inciso XVI do artigo 5º, que dispõe textualmente o seguinte: ''todos podem reunir-se pacificamente, sem armas...''. Como fica evidente, mesmo o direito de reunião, que é um dos direitos fundamentais dos brasileiros, só é assegurado se as pessoas não portarem armas. Além disso, nesse mesmo dispositivo é expressa a exigência de que a reunião seja pacífica. Essa proibição de armas é coerente com o disposto no artigo 4º da Constituição, em cujo inciso VII se estabelece que um dos princípios que regem as relações da República Federativa do Brasil é a ''solução pacífica dos conflitos''.
Outro ponto fundamental é a garantia da liberdade. O ser humano não vive sozinho, tem absoluta necessidade de conviver com outros seres humanos. Nos séculos 17 e 18 ficou definida a forma democrática de convivência no Estado moderno, tendo por base os direitos à liberdade e à igualdade. Uma conquista muito importante da humanidade foi a afirmação de que esses direitos são iguais para todos e de que o uso dos direitos de cada um fica subordinado ao respeito do mesmo direito dos outros, além do que ninguém pode alegar a defesa de seus próprios direitos para anular ou prejudicar os direitos dos demais. Assim, todos são livres mas ninguém pode usar de sua liberdade de modo a reduzir ou eliminar a liberdade dos outros ou de modo a criar riscos para a vida e a integridade de outras pessoas. É com base nisso que não se dá a ninguém a liberdade de decidir se quer ou não entrar num avião portando armas, como não se dá a um jovem a liberdade de decidir se vai armado à escola.
Um ponto igualmente importante, que foi solucionado com justiça no Estado moderno regido pelo direito, foi a segurança das pessoas e dos bens. Como herança da Idade Média e até o século 16 os homens ricos e poderosos, e só eles, viviam rodeados de homens armados para se protegerem, mas usavam dessa superioridade para proteger privilégios e praticar violências. Um dos avanços mais importantes conseguidos nos séculos 17 e 18 foi a transferência, para o Estado, do direito e dever de garantir, para todos, a segurança das pessoas e dos bens. Desse modo, o uso de armas para a proteção de direitos ficou sujeito a regras legais e deixou de ser um privilégio das pessoas de bens. Foi com inspiração nessa conquista que a Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, no artigo 144, que a segurança pública é dever do Estado. Assim, todos têm o direito de exigir do Estado que se organize para prestar o melhor serviço de segurança. Pode-se estabelecer um paralelo com o serviço de limpeza pública, que também é dever do Poder Público. Se uma rua estiver sendo mal varrida e acumular sujeira os moradores, obviamente, não vão comprar vassouras para saírem varrendo a rua, mas irão exigir a melhoria do serviço público. A mesma coisa deverá ser feita quanto aos serviços de segurança pública.
Tudo isso deve ser levado em conta quando o povo brasileiro for manifestar sua vontade no referendo sobre o comércio de armas e munição. Foi o Congresso, no final de 2003, quem decidiu que, para redução das mortes e da violência no Brasil, deverá ser proibido o livre comércio de armas e munição. Na mesma oportunidade, o Congresso resolveu que o povo brasileiro deveria ser ouvido em outubro de 2005, para referendar, ou seja, para confirmar, essa decisão. Num país civilizado, regido pelo direito, a defesa das pessoas e de seus bens é função do poder público, que para isso deve usar equipamento adequado e pessoas bem treinadas, cabendo à cidadania o direito de exigir o melhor serviço de segurança pública. Seria tremendo retrocesso conceder aos ricos o direito de terem sua polícia particular ou de agirem como tal, pois isso não daria maior segurança à população.