Título: Mulher: ainda uma criatura de segunda categoria
Autor: Raquel Stivelman
Fonte: Jornal do Brasil, 22/10/2005, Outras Opiniões, p. A11
Em países desenvolvidos ou em fase de desenvolvimento, a mulher tem conquistado o seu espaço e embora ainda existam discriminações veladas ou manifestas e maiores vantagens desfrutadas pelo sexo masculino, a mulher tem corrido atrás do prejuízo e tem recuperado um terreno considerável.
Infelizmente, em outras regiões mais oprimidas e menos desenvolvidas, a mulher vive em situação de flagrante inferioridade e é muitas vezes espancada e mal-tratada, de acordo com recentes registros difundidos pela mídia. No conturbado Afeganistão, a opressão e o sofrimento infligidos às mulheres encontram um refúgio: o alto consumo de drogas, sobretudo do ópio que não custa quase nada naquele país, que é o primeiro produtor mundial deste estupefaciente. O talibã, a guerra e a precariedade vigente levam o desespero a todos, principalmente às mulheres tão discriminadas e sofridas. O ópio é uma saída para minorar todo este sofrimento. Neste país, o homem possui o direito de vida e de morte sobre sua esposa, que é considerada como um objeto de posse, quase uma ''coisa''. Quando se tornam viúvas, a situação para muitas delas pode piorar porque elas têm muitas dificuldades em prover o seu sustento. Qual a saída para aplacar a dor? O ópio, e outras drogas, como a heroína, por exemplo.
Muitas mulheres escondem o seu vício dos maridos e, o que é estarrecedor, administram o xarope de ópio aos seus filhos para fazê-los dormir quando choram muito. Aliás, esta é uma prática corrente no Afeganistão. Os gomos de papoula são triturados e misturados ao óleo, constituindo assim um calmante muito eficaz.
Os médicos dos poucos centros de recuperação enfrentam o desafio de desintoxicarem as mães e os seus filhos, às vezes, de somente um ano de idade ou menos. Com a ausência do suporte psicológico e de suficientes centros médicos adaptados, o ópio e a heroína, disponíveis com a maior facilidade em cada esquina por pouco dinheiro, surgem como a panacéia para todos os males do espírito.
Para os traficantes, esta população feminina vulnerável é uma verdadeira fortuna inesperada. Muitas vezes, as mulheres recorrem às drogas porque temem ser repudiadas pelos maridos se porventura se tornarem ou serem estéreis. A mulher que não gera o filho desejado pelo marido é muito facilmente descartada por outra mais jovem e em pleno viço de seu ciclo reprodutor. Mulher objeto, mulher útil, nada mais!
Alguns lampejos de melhora se manifestam neste país tão peculiar, como o direito ao voto conquistado pelas mulheres. Em outubro de 2004, elas votaram para eleger o presidente, as meninas voltaram a freqüentar escolas e certas mulheres adultas podiam trabalhar se a sua família lhes desse a devida permissão. Mas, tradicionalmente, elas são mantidas sob o controle absoluto dos homens e elas permanecem sendo seres de segunda categoria. E é justamente para escapar a esta condição desumana que tantas mulheres se refugiam na embriaguez do ópio.
Das formas mais variadas possíveis, com maior ou menor intensidade, com as mais diversas tentativas de justificação, os homens têm discriminado outros homens e sobretudo os mais fracos, os mais injustiçados, os mais oprimidos, entre os quais se situam as mulheres. O homem mata e discrimina motivado pelo ódio, pela cobiça, pelas paixões. É muito triste que assim tenha sido, pois o ser humano, que é basicamente paradoxal em sua essência, é capaz de transcender tantas limitações e tentações e fazer valer o que o torna um ser animal pretensamente privilegiado. O homem possui o diabo e Deus dentro de si, que se entrechocam, se enfrentam na decisão de qual atitude deva assumir. É uma lástima que em tantos países, alguns até do primeiro mundo, a mulher seja tão discriminada e no Afeganistão, como na maioria dos países subdesenvolvidos, ela seja tratada e considerada uma criatura de segunda classe ou de classe nenhuma.
Todo ser humano deveria tratar os seus semelhantes como gostaria que eles o tratassem. Embora pareça pregação religiosa, nada mais é do que uma manifestação de bom senso e de justiça. A mulher é a fonte da vida, aquela que perpetua a continuidade do gênero humano, a terra de onde emana e germina a vida, é bem verdade com a colaboração prazerosa e destituída de qualquer sacrifício da outra metade do gênero humano. O homem tem guerreado, caçado, pescado, provido a subsistência de sua prole, defendido sua fêmea - mas como a tem maltratado!
É necessário que homens e mulheres se conscientizem do fato de que a nossa passagem por este mundo é tão fortuita, tão rápida e precisamos nos tornar um pouco mais dignos dessa dádiva divina que é uma vida mais justa e plena!