Título: Além do Fato: Armar-se em defesa da honra: de quem?
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 22/10/2005, Rio, p. A15

A discussão em torno do referendo sobre a proibição da venda de armas e munição tem desconsiderado dados relevantes, que podem ser decisivos para esclarecer a população sobre a realidade da posse e uso de armas no país.

Entre esses dados está o fato que 33% de 86.849 armas envolvidas em algum tipo de crime, de 1999 a 2004, eram registradas e pertenceram a pessoas físicas. Essas armas pertenciam a cidadãos que em defesa da sua suposta honra praticaram atos que, em outras situações, os deixariam cobertos de vergonha.

Recente trabalho produzido pela Secretaria Estadual de Segurança Pública, em parceria com o ISER - Instituto Superior de Estudos Religiosos -, analisou as fontes do abastecimento criminal das armas no Rio e mostrou que 84,9% das ocorrências criminais tinham armas de fogo envolvidas.

No balanço das armas apreendidas pelas polícias civil e militar impressiona a relação entre as armas e os casos de violência interpessoal e os chamados crimes por motivo fútil. Tal estudo concluiu que 52% das armas envolvidas em casos de estupro eram registradas, sendo que 100% pertenciam a pessoas físicas. Nos crimes de ameaça, 61% tinham registro, da quais 22% eram de cidadãos de 'bem', 69% de empresas de segurança e 9% do patrimônio público (polícias e forças armadas). No caso da lesão corporal, 45% eram registradas, sendo 61% delas propriedade de pessoas físicas, 26% do patrimônio público e 13% de empresas de segurança.

No caso da violência sexual é absolutamente estarrecedor que o total das armas fossem registradas, e que 40% das mulheres vítimas tivessem alguma relação de conhecimento com seus agressores, geralmente parentes ou conhecidos, conforme demonstram análises realizadas em 2003 e 2004 pelo Núcleo de Pesquisa, do ISP. Essas informações são relevantes porque os casos de estupro e lesão corporal são crimes cometidos por cidadãos ''ordeiros''. Isso demonstra que o estoque privado de armas legais é uma fonte importante na reprodução da violência.

Por tudo isso, é preciso superar a cultura do duelo, que ainda persiste em nosso cotidiano, onde não se admite levar desaforo para casa, e tampouco se admite buscar outra solução que não seja a força. É preciso superar a idéia de que a honra só se limpa com armas e sangue.

Apoiar o ''sim'' pode ser um importante passo para perceber que desonrado é aquele que arrisca vidas (a sua e a de outros); desonrado é quem se julga superior e cobre de vergonha as mulheres violentadas. Apoiar o ''sim'' não banirá todas as formas de violência, tampouco acabará com a criminalidade. Mas pode sinalizar que não há defesa da honra quando o resultado de um ato é humilhação e dor.

*Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP)