Valor Econômico, v. 20, n. 4964, 20/03/2020. Finanças

Aperto em dívida corporativa pode amplificar crise atual
Matt Wirz
Nick Timiraos


Graves tensões começam a aparecer no mercado de empréstimos para empresas de alto risco, que movimenta US$ 1,2 trilhão. Essas companhias tomaram somas recorde de empréstimos nos anos recentes com a busca dos investidores por rendimentos maiores. O mercado, que sobreviveu à crise de 2008, ficou sobrecarregado demais desde então, segundo afirmam autoridades reguladoras e economistas, que temem que ele esteja hoje tão grande e arriscado que seus problemas poderão ampliar qualquer dano econômico causado pela crise do coronavírus.

“O que eu sempre temi é que a existência de corporações alavancadas demais agrave uma recessão que ocorra por algum motivo”, disse a ex-presidente do Federal Reserve (Fed) Janet Yellen, em entrevista.

Anos de juros baixos e crédito fácil permitiram às empresas em geral contrair muitos empréstimos, formando uma montanha de dívida de US$ 10 trilhões. Os emprestadores acreditam que a maioria dessa dívida será paga no prazo.

O epicentro do risco envolve um subconjunto desse total: US$ 1,2 trilhão em empréstimos alavancados, dívidas com classificação por ativos corporativos parecidos com hipotecas. O mercado explodiu, crescendo quase 50% - US$ 400 bilhões - desde 2015, com os investidores desesperados pelos juros elevados desses empréstimos.

As firmas de private equity contribuíram bastante para alimentar o crescimento, tomando emprestados bilhões de dólares à época, para comprar marcas como Dell Technologies e Staples. Empresas de capital aberto menores, mas relativamente estáveis, como a fornecedora de autopeças American Axle e a fabricante de fontes de alimentação Atkore, também fizeram empréstimos alavancados para financiar recompras de ações e aquisições.

Os bancos que originam esses empréstimos raramente ficam com eles no balanço por causa das regras aprovadas após 2008. Em vez disso, eles vendem a dívida diretamente para gestores de recursos ou as reempacotam em títulos complexos vendidos a investidores globais.

Quando os preços dos empréstimos caem ou entram em default, as perdas atingem fundos de pensão, seguradores e fundos, alguns dos quais reagem vendendo, intensificando as oscilações do mercado. Além disso, os investidores se tornam menos dispostos a comprar novas dívidas e os bancos que costuram esses negócios param de fazer novas operações. Isso pode ser agravado por grandes perdas em títulos nos quais Wall Street reempacotou muitos dos empréstimos, levando os mercados de crédito a encalhar e deixando empresas já endividadas sem acesso a dinheiro novo.

As consequências podem ocorrer num feito cascata: uma onda de calotes e falências que forçará a demissões e intensificará a desaceleração da economia. O impacto provavelmente será prolongado e persistente. A maioria dos empréstimos não começa a vencer antes de 2022 e o setor mais atingido - o de energia - é um componente pequeno do mercado. Mesmo assim, os preços dos empréstimos poderão cair bastante, bem antes de as empresas ficarem sem caixa, prejudicando os investidores que detêm essas dívidas. E com os negócios secando para algumas companhias, elas poderão não ter capacidade de se manter em dia com seus empréstimos existentes.

Os empréstimos alavancados sofreram neste mês sua pior queda desde a crise financeira, quando um índice bastante observado perdeu cerca de 16% de seu valor. Os preços dos empréstimos para a 24 Hour Fitness Worldwide, que opera uma rede de academias, caíram para cerca de US$ 0,44 nesta semana, em comparação a US$ 0,80 em fevereiro, segundo a AdvantageData. Os empréstimos para companhias aéreas como United Airlines e American Airlines caíram cerca de 10% nas duas primeiras semanas de março, a maior desde outubro de 2008, segundo a S&P Dow Jones Indices.

A transformação de empréstimos em pacotes chamados “collateralized loan obligations” (obrigações de empréstimos garantidas, ou CLO, na sigla em inglês) tornou-se popular nos anos 2000, juntamente com técnicas parecidas empregadas na comercialização de bônus lastreados em hipotecas. Ao contrário dos bônus hipotecários, pouquíssimos CLOs entraram em default na crise financeira de 2008. Esse desempenho e seus altos rendimentos tornaram os CLOs populares nos últimos anos, mas eles são suscetíveis a oscilações violentas nos preços e têm sido um dos piores investimentos em dívida neste mês.

Os investidores em dívida privada continuam esperançosos de que o vírus vai ceder e que seus choques secundários serão breves. Mas como o crédito em circulação é duas vezes maior do que em 2008, segundo a S&P Global, uma recessão provavelmente desencadeará uma onda maior de defaults e perdas sobre as dívidas do que as causadas pelo estouro da bolha pontocom ou a crise financeira, afirmam analistas.

Companhias com classificação “junk” estão agora mais fracas do que naquela ocasião. Os tomadores com empréstimos classificados pela agência Moody’s nos degraus mais baixos da escala “junk” - “B3” ou inferior -, representavam 38% do mercado em julho passado, em comparação a 22% em 2008. “Os investidores ficarão surpresos com a extensão de suas perdas”, diz Oleg Melentyev, estrategista do Bank of America. Ele calcula que 29% dos empréstimos alavancados em circulação provavelmente entrarão em default de forma cumulativa na próxima desaceleração de crédito, comparado com uma média de 20% das empresas com classificação “junk” durante o período de 2007 a 2009. E os investidores provavelmente recuperarão menos dinheiro. Algo como metade de seus investimentos originais, comparado a 58% à época.

A tempestade está abalando até tomadores de empréstimos alavancados bem-estabelecidos, como a rede hoteleira Hilton. A companhia fez um empréstimo de US$ 2,6 bilhões para refinanciar uma dívida de quando ela foi comprada pelo Blackstone há mais de uma década, segundo a LevFin Insights. Os preços do empréstimo, cotados a 100% do valor de face em fevereiro, caíram para 83%, segundo a IHS Markit. A companhia tomou mais dinheiro nos últimos dias por meio de crédito rotativo de US$ 1,75 bilhão - linha de curto prazo para suportar o momento de queda no turismo e nas viagens.

Os problemas apareceram no mercado na semana passada, com empresas mandando funcionários para casa, o número de viagens diminuindo, ligas esportivas cancelando jogos e previsões sobre o impacto econômico do vírus ficando cada vez mais pessimistas.

A Moody’s rebaixou o Cirque du Soleil na quarta para uma nota de crédito “muito perto, de um default”, depois que a companhia, que emprega 4 mil pessoas, suspendeu suas apresentações em Las Vegas. O valor de face dos títulos de US$ 700 milhões emitidos em 2015 recuaram de 94% para 65%. Diretores da companhia não comentaram.

As CLOs são altamente suscetíveis porque usam dinheiro emprestado para comprar empréstimos alavancados, aumentando o rendimento e o risco dos investimentos. Os gestores de CLOs emitem bônus para comprar pacotes de empréstimos alavancados e então usam o fluxo de caixa dos empréstimos para pagar os juros e o principal dos bônus CLOs, embolsando a diferença.

Também preocupante é o fato de que ficou cada vez mais difícil na semana passada negociar empréstimos existentes de grandes companhias que são vistas como apostas comparativamente seguras. A diferença entre o que os vendedores estavam pedindo e o que os compradores queriam pagar por empréstimos da Dell aumentou para 2 pontos percentuais na semana passada, sendo que o normal é 0,5 ponto.

Se os negócios secarem, investidores e analistas esperam que o Fed possa intervir para evitar um aperto de crédito. No domingo, o banco central dos Estados Unidos cortou os juros para perto de zero e disse que iria comprar US$ 700 bilhões em títulos do Tesouro e títulos lastreados em hipotecas, para ajudar a diminuir a tensão nos mercados.

Na terça, o Fed anunciou planos para começar a emprestar para companhias americanas numa tentativa de desobstruir o mercado de dívida de curto prazo (commercial papers), que movimenta US$ 1,1 trilhão.

Eric Rosengren, presidente do Federal Reserve de Boston, disse este mês que sem uma resposta forte do Congresso e da Casa Branca no combate a uma eventual recessão, o Fed precisará de uma autorização do Congresso para empregar novos instrumentos para estimular o crescimento, como a permissão para que compre bônus corporativos e outros ativos do setor privado. Um nível elevado de dívidas corporativas “é um dos resultados negativos de se ter taxas de juros baixas por muito tempo”, disse ele. “Veremos quanto do problema se refere ao desemprego.” / Dow Jones Newswires