O Globo, n. 32587, 26/10/2022. Brasil, p. 14

Avanço, mas não solução

Lucas Altino
Bruna Martins


O governo do Rio Grande do Sul anunciou na segunda-feira que começará a usar tornozeleiras eletrônicas para monitorar agressores de mulheres que descumpram medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha. Em São Paulo, um edital será lançado para a compra dos equipamentos. No entanto, para especialistas, o monitoramento eletrônico só será uma eficiente para evitar mais agressões se o uso for bem planejado com outras medidas de prevenção e patrulha.

No Brasil, ao menos outros sete estados fazem uso da tornozeleira para esse tipo de agressor: Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.

Em Santa Catarina, onde o dispositivo é usado desde 2014, os homens que atacaram mulheres são cerca de 10% do total dos portadores de tornozeleira: 266.

Há estados onde a prevenção é pouco utilizada. No Rio, são apenas 109 homens com tornozeleira eletrônica por causa da Lei Maria da Penha, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, num universo de mais de 6 mil pessoas que têm de usar esse controle por ordem da Justiça. Uma ata de uma reunião de 2020 da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, do Tribunal de Justiça do estado, mostra que, naquele ano, havia apenas 16 agressores de mulheres monitorados, para um total de 6.133 pessoas que usavam tornozeleiras por todos os tipos de crime.

No Rio Grande do Sul, o projeto terá investimentos de R$ 4,2 milhões. A expectativa da Secretaria da Segurança é de que 2 mil mulheres recebam um aplicativo de celular integrado à tornozeleira usada pelo homem que a agrediu. A ferramenta é um alarme que apita — tanto para a vítima, quanto para a central de monitoramento — quando a pessoa com tornozeleira eletrônica ultrapassa o limite de distância definido pelo juiz, normalmente entre 200 e 400 metros.

Em Minas Gerais, o alarme é dado por um pager. A Secretaria de Segurança informou que usa a tecnologia há 10 anos. Em 2022, 533 agressores foram punidos com o monitoramento.

— Os números de violência doméstica, especialmente de feminicídio, tiveram incremento, principalmente na pandemia. Esse projeto é bem-vindo — avaliou a defensora Luciana Artus, do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul.

Artus admitiu, no entanto, que é difícil que os equipamentos e as equipes de monitoramento sejam suficientes para a demanda de casos, e a filtragem das situações mais necessárias não é fácil. Ela disse, porém, que a ferramenta é útil para comprovar quando o agressor estiver descumprindo as medidas protetivas.

— Em muitos casos, a mulher vai à delegacia e informa, mas se não tiver flagrante, dificulta a prisão. Agora vai facilitar muito — comparou a defensora.

Mesmo a tornozeleira parece não intimidar os agressores, em alguns casos. A cozinheira X., que pediu para não ser identificada, viveu um relacionamento abusivo, de 2015 a 2021, marcado por agressões que resultaram em fraturas no nariz e nos dedos. O ex-companheiro tem de usar tornozeleira, e o aparelho comprova que ele continua tentando se aproximar de onde ela mora, em Belo Horizonte. A defensoria pediu à Secretaria de Segurança de Minas um relatório com todos os deslocamentos do agressor, para avisar ao Ministério Público e a prisão do excompanheiro seja pedida.

Em 2019, quando estava grávida, a cozinheira sofreu a primeira agressão mais grave, quando o homem a trancou em casa. Ela conseguiu ligar para polícia, denunciando o cárcere privado. Os policiais a libertaram, mas ele não estava no local e não foi preso. Nos meses seguintes, o homem, que já havia sido acusado de tráfico de drogas, permaneceu ameaçando X., que se intimidou e não o denunciou à Polícia.

No fim de 2020, o filho dela, de um casamento anterior, foi para a rua gritar por socorro, após um espancamento da mãe em que ela teve um nariz quebrado, que precisou sofrer uma cirurgia. O agressor foi preso e enquadrado na Lei Maria da Penha. Mas solto 15 dias depois, já com as medidas protetivas. Ainda assim, ele a continuou perseguindo, e mesmo preso em flagrante, sempre foi solto pouco depois, conta ela.

— Mesmo preso me ameaçou, dizendo que se eu não tirasse o monitoramento, me matar. Trabalho à noite, preciso entrar escondida em casa. Às vezes, tenho medo de sair para casa e não voltar — diz a cozinheira, que fez o último boletim de ocorrência contra o homem há 20 dias.

Até 2021, entre os estados que fazem uso de tornozeleira eletrônica, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul eram os com maior taxa de feminicídio: respectivamente 2,6 e 2,4 crimes a cada 100 mil mulheres, segundo o Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mato Grosso e Santa Catarina tiveram 535 e 405 vítimas de violência doméstica.

A taxa de concessão de medidas protetivas de urgência teve um aumento nos estados porque pedidos feitos em anos anteriores só foram concedidas em 2021. Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Santa Catarina são os com maiores índices de concessões, ocupando o segundo, terceiro e quarto lugares no ranking do Anuário de Segurança Pública.

Políticas integradas

Para Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum, os estados deviam criar políticas integradas para esse problema.

— O botão do pânico, usado para chamar a Polícia Militar, não funciona se uma patrulha para este fim não estiver disponível — explicou Martins, que destacou o uso dos grupos reflexivos para homens.

— O mais importante é fazer com que os agressores deixem de naturalizar aspectos violentos da nossa cultura e entendam porque as ações deles são criminosas.

Uma das ferramentas que deveriam ser usadas é a avaliação de riscos, explicou Livia Paiva, advogada e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Raça, Gênero e Etnia da Escola da Magistratura do Rio. A avaliação permite apontar que a ocorrência de perseguição, o término recente, a presença de enteado (do agressor) em casa e o uso de frases possessivas são claros fatores de risco. Hoje, já é determinado por lei que as delegacias usem o formulário nacional de avaliação de risco, mas isso não acontece na prática.