O Globo, n. 32588, 27/10/2022. Economia, p. 17

Insegurança alimentar

Fernanda Trisotto


O governo de Jair Bolsonaro (PL) focou em transferência de renda — com o Auxílio Brasil, turbinado neste ano eleitoral —, mas deixou de lado outros programas de combate à fome. Enquanto o orçamento para transferência direta de renda cresceu entre 2019 e 2022, a verba para seis ações cruciais para a segurança alimentar caiu 38%. Em alguns casos, os programas foram totalmente desmantelados.

Essas ações, que tinham gastos programados de R$ 9,4 bilhões em 2019, em valores já corrigidos pela inflação, sofreram redução sucessivas e ficaram com orçamento de R$ 5,8 bilhões em 2022. E no ano que vem pode haver ainda mais cortes: o orçamento previsto para 2023, que pode sofrer ajustes no Congresso, é de R$ 4,4 bilhões — se confirmado, uma redução de 52,9% em relação a 2019.

Em contrapartida, o orçamento da transferência de renda cresceu. Em 2019, já em valores corrigidos, o Bolsa Família tinha R$ 37,5 bilhões. Em 2022 houve um salto de 149%, a R$93,5 bilhões. Além disso, no período, o governo fez gastos para além do teto (regra que limita o aumento de despesas públicas), com o Auxílio Emergencial durante a pandemia, e flexibilizou regras fiscais para gastar mais com a ação, atendendo à ambição eleitoral do presidente.

Nos seis programas com foco mais estruturante, funcionários relatam ainda desarticulação na gestão, trocas constantes nas equipes e falta de continuidade de projetos, além dos cortes — houve uma perda, no total, de R$ 3,6 bilhões entre 2019 e 2022.

Mudança de foco

João Evangelista Santos Oliveira, assessor da Cáritas do Piauí e coordenador do Fórum do Semiárido no estado, vê piora sob o atual governo:

— A gente conseguia mobilizar junto ao governo em torno de R$ 1,4 bilhão por ano, e isso sempre chegou na ponta, na construção de cisternas. O último edital foi em 2019, de R$ 60 milhões. Aí o governo não aportou mais. O projeto extinguia a fome do flagelo, as pessoas que morriam de fome ou de sede.

Alimentos básicos como arroz e feijão não têm mais estoques públicos, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o que extinguiu uma arma contra a inflação. O programa, de um orçamento de R$ 1,74 bilhão em 2019, passou a R$ 383,3 milhões este ano.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) não tem os valores reajustados desde 2017, e há escolas que recebem R$ 0,32por aluno. Isso ocorre porque Bolsonaro vetou em agosto o reajuste de 34% nesta verba, que havia sido aprovada pelo Congresso.

— Trinta e poucos centavos por aluno, por dia letivo, é um valor insignificante — disse Otoni Costa de Medeiros (União), prefeito de Várzea, no sertão da Paraíba.

Além disso, uma decisão tomada no primeiro dia do governo Bolsonaro —a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) —reverberou na coordenação das ações contra a fome. Considerado fundamental para o semiárido nordestino, o programa de cisternas — para abastecimento humano e produção agropecuária —foi praticamente extinto. Servidores que fizeram carreira no programa pediram para deixá-lo, devido à desarticulação.

Já o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que distribuía produtos a quem não tem acesso à alimentação, foi totalmente adulterado, segundo servidores do Ministério da Cidadania. Primeiro, foi incorporado pelo Alimenta Brasil, uma mudança de nome para registrar a marca do governo Bolsonaro. Depois passou a reforçar a distribuição de cestas básicas, ampliando seu uso político. Um exemplo foi a atuação de Mariana Carvalho (PSC-MA), suplente de deputada federal que assumiu o programa, mas que só divulgou a entrega de cestas básicas no próprio estado.

Na assistência social, os cortes afetam a “busca ativa”, de moradores nas ruas ou pessoas em situação grave, e a proteção social básica, cujas atividades incluem a manutenção dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), porta de entrada do Cadastro Único. Entre 2019 e 2022, a queda de verba foi de 55,7%.

‘Não faz barulho’

Para João Luiz Guadagnin, consultor em desenvolvimento rural e crédito, os problemas se acumulam:

— Quando o governo desestimula a compra de alimentos da agricultura familiar, reduz mercado, e isso encarece o custo, e não só para as prefeituras que compram os produtos. A oferta de alimentos como um todo é atingida quando essas políticas não andam juntas.

A avaliação da economista Monica de Bolle é que o governo Bolsonaro enfraqueceu os sistemas de pesos e contrapesos que serviam para fiscalizar essas ações:

— O que acaba sofrendo mais são exatamente esses programas que não são visíveis para boa parte da população, apenas para os mais pobres e com menos articulação política. O governo consegue tirar os recursos e não faz barulho.

O professor da UFRB Silvio Porto, ex-diretor da Conab, concorda que, na atual situação socioeconômica e com o avanço da fome, a retomada desses programas é crucial:

— São programas estratégicos, que podem resolver rapidamente os problemas de parcela expressiva da população.

Procurados, o Ministério da Cidadania e o Planalto não responderam.