Valor Econômico, v. 20, n. 4967, 23/03/2020. Brasil

Relação bilateral vai esfriar, mas pragmatismo deverá prevalecer

Cristian Klein


Ex-embaixador na China, o conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) Roberto Abdenur, de 77 anos, afirmou ao Valor que a crise diplomática com o país asiático provocada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, deve esfriar a “relação calorosa” que o Brasil vinha construindo com seu maior parceiro comercial, mas não deve afetar concretamente os interesses nacionais. “Não interessa à China ver nenhum dano na relação com o Brasil. Os interesses em jogo são muito firmes para serem comprometidos pelas bobagens que são ditas pelo Eduardo ou pelo Ernesto Araújo [ministro das Relações Exteriores]”, disse Abdenur.

Para o ex-embaixador, o pragmatismo e a responsabilidade vão prevalecer até porque neste caso “a verdadeira chanceler é a ministra da Agricultura”, Tereza Cristina, que defende os interesses do agronegócio, maior vítima de uma potencial retaliação da China. Cerca de 80% da soja nacional é vendida para o país asiático. Mas a dependência seria recíproca: “O Brasil também é indispensável para a segurança alimentar da China”, disse.

Com quase 1,4 bilhão de habitantes, a China é destino de 28% do comércio exterior brasileiro. Está bem à frente do segundo colocado, os Estados Unidos (15%), e supera até o bloco de países da União Europeia (16%). Depois da soja, que representa um terço da exportação para os chineses, estão o petróleo (24%) e o minério de ferro (21%).

Abdenur destacou que a China já tem “um mal-estar maior” com a guerra comercial que trava com os Estados Unidos. Uma trégua entre eles ocorreu no fim do ano passado, mas a disputa ainda é a principal frente de conflito para os chineses, que devem manter a relação privilegiada com o Brasil, afirmou o diplomata. “Ainda sou otimista e acho que esse mal-estar é passageiro. Mas foi compreensível que a embaixada da China tenha reagido duramente. A linguagem não foi exatamente diplomática. Eles desceram ao nível do Eduardo Bolsonaro”, afirmou.

A crise diplomática começou na quarta-feira, quando o deputado, que atua como uma espécie de chanceler informal no governo do pai, responsabilizou a China pela disseminação do coronavírus, pandemia que já matou cerca de 14 mil pessoas pelo mundo em menos de três meses. Em resposta dura, a embaixada da China no Brasil afirmou em sua conta pelo Twitter que Eduardo contraiu um “vírus mental, que está infectando a amizade entre os nossos povos”, e o embaixador Yang Wanming exigiu que o filho de Bolsonaro pedisse desculpa aos chineses, o que não foi feito.

Quem se desculpou foram políticos e autoridades, como o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG), que está à frente dos trabalhos da Casa desde que o presidente do colegiado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), entrou em quarentena para se tratar da covid-19. Além de Eduardo

Bolsonaro não ter pedido desculpas, o ministro Ernesto Araújo partiu novamente para a ofensiva ao cobrar do embaixador da China que se retratasse. Na quinta-feira, Wanming relatou ter recebido por telefone ameaças à sua “segurança pessoal”. Ao entrar no circuito, Jair Bolsonaro tentou contornar a crise, mas o presidente chinês, Xi Jinping, se recuso atendê-lo, conforme informou o Valor.

Para Roberto Abdenur, o líder da China pode ter deixado de atender Bolsonaro por alguma outra razão mas, se o principal motivo foi o imbróglio diplomático, “isso é desagradável” e pode acrescentar um nível a mais de gravidade na crise. “Não afeta os interesses concretos, mas esfria a relação calorosa que vinha de construindo”, afirmou o ex-embaixador. Abdenur sublinhou que o próprio Bolsonaro mudou de tom ao assumir o governo, depois de ter feito uma campanha eleitoral em 2018 agressiva em que um de seus bordões era que “a China deixaria de comprar o Brasil, para comprar no Brasil”. Em outubro, na visita oficial que fez ao país, Bolsonaro assinou acordos com Xi Jinping nas áreas de agropecuária, infraestrutura, energia e educação.

Em novembro, em Brasília, no encontro anual dos países emergentes dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), Bolsonaro ensaiou outro passo à maior aproximação, em declaração mais pragmática do que ideológica, quando disse que “a China é cada vez mais parte do futuro do Brasil”. Para Abdenur, a relação com a China é “muito rica” e envolve além dos Brics outros fóruns e instituições como o G-20 - grupo dos países que representam 90% do PIB mundial - e o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) dos Brics.

Abdenur, que também foi embaixador em Washington, lembrou que a relação com a China é até “mais fácil” pois o governo do país, dirigido num sistema de partido único, propicia a existência de um interlocutor já conhecido. Mais preocupante, em sua opinião, é a relação de total alinhamento de Bolsonaro com os Estados Unidos e, especificamente, com o governo de Donald Trump. Caso haja uma guinada, nas eleições deste ano, e o candidato democrata - provavelmente Joe Biden, ex-vice-presidente durante a administração de Barack Obama - vença o presidente republicano Trump, a tendência é que o Brasil possa sair prejudicado, apesar de certa “inércia da máquina americana” referente a acordos diplomáticos. “Se houver reviravolta no quadro da política americana, vamos perder essa boa vontade em relação ao Brasil”, disse Abdenur.

Para o ex-embaixador, o fluxo de comércio do Brasil com a China neste ano poderá verificar uma eventual redução não por uma retaliação, mas pelo “simples fato” de que o país asiático, por causa dos efeitos do coronavírus, tenha uma queda abrupta do PIB. No ano passado, o crescimento da China já havia sido de 6,1%, em meio à guerra comercial com os Estados Unidos. Embora muito alto para os padrões brasileiros e de outras economias, foi a menor expansão da atividade chinesa em 29 anos. Na semana passada, o banco UBS revisou a projeção do PIB da potência asiática em 2020 para 1,5%.

Com isso, a rigor, o problema da política externa brasileira não é, exatamente, a China, mas uma espécie de “conjunto da obra” com os três maiores parceiros comerciais, incluindo a os Estados Unidos e a União

Europeia, disse Abdenur. No caso dos europeus, pesa contra o Brasil o descaso com que Bolsonaro trata a questão ambiental e a relação extremamente beligerante que protagonizou com os líderes das duas maiores potências do bloco. “Bolsonaro já está queimado com o [presidente da França Emmanuel] Macron, com a [chanceler alemã Angela] Merkel, e com a União Europeia. Há o risco de o Brasil ficar crescentemente isolado. Mais uma razão para não se abalar a relação privilegiada com a China”, afirmou.