O Globo, n. 32590, 29/10/2022. Opinião, p. 3

O paradoxo da frente ampla

Pablo Ortellado


A campanha de Lula para a Presidência foi cautelosa. Seguiu as recomendações mais prudentes dos especialistas que indicavam constituir uma frente ampla em defesa da democracia para enfrentar Jair Bolsonaro. E, embora as pesquisas sugiram que a estratégia deverá ser bem-sucedida, ela também terminou por confirmar os fantasmas do discurso populista do atual presidente.

Cientistas políticos e a experiência de outros países recomendavam formar uma frente ampla, da esquerda até a centro-direita, para derrotar Bolsonaro. No meio acadêmico, o cientista político Steven Levitsky, de Harvard, foi o mais preeminente defensor da frente ampla. No influente livro “Como as democracias morrem”, mostrou como frentes amplas podem salvar a democracia de ameaças autoritárias, a exemplo do que aconteceu quando a oposição a Pinochet se uniu para derrotá-lo no plebiscito de 1988. Foi com uma estratégia assim, de união nacional, que Macron derrotou duas vezes a candidata da extrema direita Marine Le Pen, em 2017 e 2022.

Lula parece ter anotado a lição e começou uma ampla articulação de apoios a sua candidatura. Os economistas que ajudaram a arquitetar e a sustentar o Plano Real Arminio Fraga, Edmar Bacha, Pedro Malan e Persio Arida declararam voto nele. Por anos, foram vistos pelos petistas como o coração das políticas liberais, a encarnação de todo o mal. Não foram apenas eles. Outros tucanos históricos, como Fernando Henrique Cardoso, José Serra ou Tasso Jereissati, também apoiaram Lula. Foram por mais de 20 anos os principais oponentes do petismo.

No meio jurídico, não foi diferente. O ex-ministro do Supremo e relator do mensalão Joaquim Barbosa declarou voto em Lula. Também manifestou apoio ao petista Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. O julgamento do mensalão, liderado por Barbosa, é um dos marcos fundamentais do antipetismo, e o processo de impeachment de Dilma, proposto por Reale Jr., sua apoteose.

Reuniram-se também para apoiar Lula os ex-candidatos a presidente Henrique Meirelles, João Amoêdo, Marina Silva, Luciana Genro e Cristovam Buarque. O candidato a presidente em 2006 e 2018 Geraldo Alckmin é o vice na chapa de Lula. A candidata Simone Tebet e o candidato Ciro Gomes, que ficaram em terceiro e quarto lugares no primeiro turno respectivamente, também apoiam o ex-presidente.

Lula conseguiu montar uma coalizão tão ampla que vai do PSTU a dissidentes do Partido Novo, com quase tudo o que está entre os dois extremos. Mas, se isso parece cumprir a recomendação de Levitsky de montar uma ampla coalizão em defesa das instituições democráticas, também fortalece, involuntariamente, o discurso populista de Bolsonaro.

Embora tenha sido deputado federal por longos 28 anos, o presidente conseguiu se apresentar aos eleitores como outsider, como um não político e, de certa forma, um antipolítico. De fato, durante todos esses anos no Congresso, ele foi um político marginalizado, desprezado e ridicularizado pelas forças dominantes.

Um dos feitos mais notáveis do então candidato Jair Bolsonaro em 2018 foi converter a vigorosa onda antipetista do impeachment em disposição antissistema, generalizando críticas antes restritas ao PT a todos os políticos e partidos “tradicionais”. Naquelas eleições viralizaram fotos de FH com Lula, nas portas das fábricas nos anos 1970, assim como fotos de Lula com líderes do Centrão. Elas sugeriam que todos os políticos tradicionais eram farinha do mesmo saco, e apenas Bolsonaro era diferente.

A constituição da frente ampla, por um lado, mostra a união responsável das lideranças políticas brasileiras em defesa das instituições democráticas. Mas, por outro, ilustra, na cabeça dos bolsonaristas, a convergência de todo o sistema, de todo o establishment para derrotar Bolsonaro, como sugeriam as fotos “delirantes” de 2018 dizendo que Lula, FH e o MDB eram iguais.