O Globo, n. 32591, 30/10/2022. Política, p. 12

A mentira como aliada

Bela Megale


Às 20h do domingo, 2 de outubro, o clima de apreensão dominava o mezanino do Novotel, no Centro de São Paulo. O local foi escolhido pela campanha para que o ex-presidente Lula acompanhasse as apurações do primeiro turno com familiares, aliados e artistas que o apoiam, como a cantora Daniela Mercury. Naquele momento, já se passavam três horas desde o início da contagem de votos e quase 70% das urnas estavam apuradas, mas o presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda aparecia na dianteira, que assumira às 17h13m.

Precisamente às 20h02, gritos e aplausos tomaram conta da sala que abrigava cerca de 50 pessoas. O petista beijou a mulher, a socióloga Janja, e ergueu os braços: havia ultrapassado o adversário — ao fim da apuração, ficou com 48,43% dos votos, contra 43,2% do presidente.

— A gente sabia que não ia ser fácil, mas vamos vencer. Seguimos na luta — disse o ex-presidente aos convidados.

Apesar do otimismo, o clima real era de apreensão. No dia seguinte, uma pancada chegou cedo ao QG de Lula. Enquanto o ex-presidente estava reunido com o núcleo duro da campanha para debater novos apoios, levantamentos internos mostravam que uma nova fake news disseminada por bolsonaristas havia colado em Lula.

Satanismo x maçonaria

As mensagens vinculavam o ex-presidente ao satanismo e tinham como base um vídeo do influenciador Vicky Vanilla, que se define como satanista. A deputada Carla Zambelli (PL-SP), aliada de Bolsonaro, compartilhou o vídeo e escreveu: “A guerra é espiritual! É o bem contra o mal!”. A campanha de Lula publicou um comunicado para esclarecer que o ex-presidente “não tem pacto nem jamais conversou com o diabo”. Mas, àquela altura, o estrago já estava feito.

A presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), e os coordenadores da comunicação — o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, e o deputado federal Rui Falcão (SP) — decidiram que era necessário dar uma resposta à altura, e não só nas redes sociais. Foi neste momento que a equipe, com o marqueteiro Sidônio Palmeira, optou por levar à televisão uma entrevista que Bolsonaro concedeu ao jornal New York Times, em 2016, que já circulava no Twitter. Nela, o presidente disse que “comeria um índio sem problema nenhum”.

— A campanha de Bolsonaro entrou no segundo turno de maneira muito violenta, que não nos deixou alternativa, a não ser a de fazer um ataque imediato. Não exploramos mentiras, mas mostramos Bolsonaro para o povo — justificou Gleisi.

Integrantes da campanha relataram ao GLOBO que um dos fatores que encorajaram os petistas a fazerem os ataques abaixo da linha da cintura foram os efeitos sentidos a partir da associação de Bolsonaro à maçonaria. O movimento, que começou espontaneamente nas redes sociais, foi abraçado por membros da campanha, como o deputado André Janones (Avante-MG), um dos principais braços de Lula na arena digital. Em uma live, após o vídeo maçônico viralizar, o parlamentar disse que Bolsonaro fez “pacto” com o grupo para ganhar a eleição. Foram mais de 2,6 milhões de visualizações.

“Rebaixa o nível ou perde"

O objetivo era provocar desgaste de Bolsonaro com o eleitorado evangélico, pois a maçonaria já tinha sido criticada por lideranças do segmento que o apoiam, como o pastor Silas Malafaia. Os petistas conseguiram um respiro. Números obtidos pela campanha mostraram que a associação do presidente à maçonaria teve sucesso para fazer contraponto aos conteúdos que ligavam Lula ao satanismo. Decidiu-se, então, levar os ataques para a televisão.

Após esse episódio, Janones ficou mais próximo do núcleo duro da campanha e ganhou protagonismo na guerrilha digital.

— A coordenação da campanha e o ex-presidente Lula perceberam o resultado que entreguei. Por isso, tive carta branca e autonomia. Do jeito que está, ou a gente rebaixa o nível, ou perde a eleição — disse Janones.

O parlamentar atuou como uma linha acessória, já que Lula não poderia trazer para suas redes oficiais as brigas compradas pelo deputado. Logo, Janones se tornou um incômodo para os bolsonaristas e chegou a ser acionado no Conselho de Ética da Câmara. O parlamentar, porém, nega que dissemine mentiras. Diz que faz “suposições do que pode ocorrer” e que “vai até o limite”.

Lula acompanhou os atos mais como observador do que estrategista — analógico, sequer tem celular. O elo do petista com o mundo digital é Janja, que mostra ao marido postagens e notícias. Aliados destacam que ela é uma espécie de “assessora de assuntos online” e que tem um papel importante nessa frente, “tanto para o bem quanto para o mal”, por não fazer filtro do que apresenta ao marido.

Aliados avaliam que, até poucas semanas atrás, o petista também subestimava o potencial das fake news de alterarem os rumos da eleição. Até que a história do satanismo veio com tudo, e Lula assimilou que factoides poderiam tirar sua liderança. Com isso, foi cedendo a apelos, até que decidiu usar uma entrevista para desmontá-las.

Foi o que aconteceu no Flow Podcast, exibido em 18 de outubro, que teve mais de 1,7 milhão de visualizações. Antes da gravação, uma romaria de aliados foi a Lula, separadamente, para convencê-lo a usar o programa para desmentir fake news. “O senhor precisa dizer que não vai fechar igreja, que não vai ter banheiro unissex e que é contra o aborto, porque as pessoas acreditam nessas coisas”, disse um aliado. A mesma mensagem foi repetida por Edinho, Rui, Sidônio, Gleisi e o ex-ministro Aloizio Mercadante, coordenador da campanha. Eles destacaram a importância de ter frases explícitas de Lula sobre esses assuntos para fazer cortes de vídeos e abastecer a militância digital. O petista, que de início resistia, fez o que foi pedido. No dia seguinte, o programa eleitoral foi feito com base em suas falas no Flow.

Apesar de delegar os programas de TV à área de comunicação, Lula não escondia o incômodo com o tom agressivo das propagandas. Queria que a economia voltasse a ser o foco. Ouviu da equipe que ainda não era a hora de desacelerar, pois a campanha estava muito pressionada pelos ataques nas redes, e a televisão era um braço importante de “defesa e contra-ataque”. A segunda semana de outubro foi considerada um dos momentos mais tensos do segundo turno, com levantamentos mostrando uma tendência de crescimento leve e gradual de Bolsonaro. Até que chegou o dia 14, quando o presidente afirmou em entrevista a um podcast que “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas, que estavam arrumadas para “ganhar a vida”. Em meio à repercussão negativa para Bolsonaro, Lula assumiu a dianteira dos ataques, ligando, inclusive, o presidente à pedofilia.

Após respiro, novo ataque

Em uma reunião com 18 mil militantes realizada quatro dias depois do episódio, a orientação era clara: não deixar o assunto morrer.

— O “pintou um clima” não pode desaparecer das redes — disse Randolfe Rodrigues (Rede-AP), da equipe de coordenação da campanha, em reunião virtual com militantes.

A determinação seguia as pesquisas qualitativas, que mostravam que a associação do presidente ao episódio ajudava a manter sua rejeição elevada. A campanha também fez vídeos vinculando Bolsonaro à pedofilia. Um deles foi levado para a TV, com elogios do chefe do Executivo ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner, descrito como “pedófilo que mantinha meninas como escravas”.

Com o respiro alcançado nas redes e a reportagem do jornal Folha de S. Paulo sobre a proposta de desvincular o salário-mínimo e a aposentadoria da inflação, os petistas viram uma brecha para trazer a pauta econômica. Àquela altura, faltavam dez dias para a eleição.

A coordenação, então, se reuniu para debater um realinhamento. Ficou decidido que a artilharia nas redes seguiria forte, mas que, na televisão, o tom seria amenizado. Os ataques eram tantos de ambos os lados que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, construiu um armistício — na sexta-feira, as duas campanhas decidiram abrir mão das ações que tratam de direitos de resposta.

A readequação se limitou à TV: a estratégia definida para a última semana de campanha foi a de privilegiar economia e esperança. O episódio violento protagonizado pelo ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, no entanto, fez com que parte da campanha petista defendesse o retorno à rota dos ataques a sete dias da eleição. Um vídeo foi produzido e levado às redes. Na TV, o caso foi citado em um filme que destacava os riscos do armamento defendido pelo presidente. O episódio foi decisivo para mudar o ânimo da campanha petista. Se nas três semanas anteriores o clima era de tensão e esforços concentrados para conter o crescimento de Bolsonaro, dali em diante o ambiente mudou e a equipe voltou a acreditar na vitória.