O Globo, n. 32591, 30/10/2022. Opinião, p. 2

Vencedor terá de reunificar país dividido



Foram tantas as vezes em que o presidente Jair Bolsonaro flertou com o golpismo que a nona eleição presidencial desde a redemocratização tornou-se também a primeira em que se faz necessário exigir respeito ao resultado. Depois de impor inúmeras vezes a condição de serem “eleições limpas” para aceitá-lo —brecha aberta para contestação—, Bolsonaro deu enfim ontem de madrugada a primeira declaração sensata sobre o tema. “Não há a menor dúvida. Quem tiver mais voto leva. É isso que é democracia”, afirmou ao final do debate em que enfrentou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na TV Globo.

Se perder, tem de cumprir o que disse. Tentativas de levar a disputa aos tribunais precisam ser repelidas com vigor e presteza, qualquer que seja o pretexto para justificá-las. Mas, ainda que Bolsonaro vença ou nada faça, o país sairá dividido da campanha mais polarizada (e suja) de sua História. Mesmo que em tom mais civilizado, o debate comprovou que a desinformação ocupou o lugar da discussão serena de propostas e ideias. Persiste a desconfiança, uma competição para ver quem chama mais o outro de mentiroso.

Seria ilusão acreditar que não haverá sequelas. Mesmo assim, é preciso confiar na força da democracia para se reparar. O vencedor da eleição precisará descer logo do palanque para compor um governo com palavras e atos que apaziguem o país. Quem quer que seja eleito enfrentará um início de governo desafiador. Há sinais de desaceleração na economia, os juros estão altos para conter a inflação ainda renitente, e a devastação do Orçamento sob Bolsonaro, mascarada pela arrecadação, deixou ao eleito a obrigação de resgatar a credibilidade fiscal. A conta da esbórnia eleitoreira será cobrada em 2023.

Sobre esse tema essencial, a campanha pouco esclareceu. Em seu programa de governo, Lula não foi além de obviedades como combate à fome e à pobreza. Apenas na última quinta-feira lançou sua “Carta para o Brasil do amanhã” defendendo uma combinação de responsabilidade fiscal, responsabilidade social e desenvolvimento sustentável. O compromisso é tardio, e faltou explicar como alcançar as metas.

Lula tentou afastar o fantasma de delírios na economia chamando Geraldo Alckmin para vice e reunindo uma ampla aliança no segundo turno, abarcando ex-rivais como Marina Silva e Simone Tebet, liberais como Arminio Fraga, Henrique Meirelles e os formuladores do Plano Real, juristas como Joaquim Barbosa (algoz do PT no mensalão) e Miguel Reale Jr. (autor do impeachment de Dilma Rousseff), para não falar no ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas são apenas indícios.

Também faltam informações sobre a economia num eventual governo Bolsonaro II. A gastança eleitoreira dos últimos meses e a profusão de promessas na campanha — do reajuste do salário mínimo para R$ 1.400 ao perdão de dívidas —demonstram que o presidente aprendeu rápido a arte do populismo com dinheiro público.

No campo político, as eleições para a Câmara e o Senado deram aparente vantagem a um segundo governo Bolsonaro. Mas quem quer que vença terá de negociar com outras forças políticas para governar. Isso é bom. O maior desafio ao final de uma campanha eleitoral violenta é abrir caminho ao diálogo. Só ele poderá propiciar um governo competente na gestão, zeloso de seus espaços institucionais e capaz de reunificar um país rachado ao meio.