Valor Econômico, v. 20, n. 4961, 21/03/2020. Opinião, p. A13

Coronatime

Jairo Saddi


Nesses tempos bicudos, gostaria de tratar neste espaço sobre crise bancária. Já tivemos artigos sobre o Momento Minksy, muitos comentários sobre cenário e conjuntura, paira sobre nós uma certa percepção de estrangulamento de crédito, então é útil neste ponto indagar se poderá advir uma crise bancária como efeito do coronavírus.

Há inúmeras definições próximas, algumas de teor mais econômico e outras de teor mais jurídico, porém, mesmo assim, é evidente que uma crise bancária vem a ser um estágio anormal numa economia. A definição de crise bancária passa pela a “venda forçada de ativos quando a estrutura dos passivos não estiver alinhada com o valor de mercado dos ativos, o que conduz a um declínio progressivo de seus valores”. (Fischer)

Para muitos, a crise bancária só se instala em uma dada situação econômica quando há uma procura elevada por reserva monetária que não pode ser satisfeita em curto prazo, o que não parece ser o caso atual. Para outros, a crise bancária se dá quando há uma liquidação forçada de créditos acumulados, com uma consequente e radical redução nos preços dos ativos bancários ou quando um problema de imagem e reputação afeta os negócios da instituição, o que também, ao menos por enquanto, não parece se assemelhar à situação atual. Finalmente, há uma crise bancária quando um grupo significativo de instituições financeiras possui passivos que excedam o valor de mercado

redução nos preços dos ativos bancários ou quando um problema de imagem e reputação afeta os negócios da instituição, o que também, ao menos por enquanto, não parece se assemelhar à situação atual. Finalmente, há uma crise bancária quando um grupo significativo de instituições financeiras possui passivos que excedam o valor de mercado de seus ativos, acarretando assim uma corrida bancária. Também não se aplica aqui.

Se nada disso se aplica, a primeira conclusão óbvia é que crise bancária não é sinônimo de ciclo econômico depressivo, apesar de, evidentemente, poder representar uma de suas principais causas num instante seguinte. Ciclos econômicos têm natureza e origem diversas, e, mesmo que haja alguma relação com crises bancárias (que podem aprofundar-se e até gerar uma depressão econômica), os assuntos não são intercambiáveis.

Do ponto de vista de câmbio, só haveria crise bancária se houvesse uma crise da balança de pagamentos. Como nosso câmbio flutua, os riscos

aqui são apenas de um overshooting nas relações de troca e portanto, uma crise da balança de pagamentos teria de ser revestida de uma lógica própria em função da fragilidade da exposição de bancos locais a flutuações externas.

Os traços comuns atuais com roteiros acentuadamente inesperados levam a indicação de uma redução drástica na atividade econômica. É verdade que com o atual momento, há a dificuldade de precisar o valor de mercado dos ativos; o fato de uma redução dos valores dos ativos não corresponder a uma redução equivalente nos passivos, o que pode tornar os agentes econômicos mais vulneráveis a desequilíbrios e os índices de volatilidade das bolsas apenas é um indicador disto.

No entanto, há sempre o medo do comportamento irracional que é detectado quando um agente econômico deixa de usar critérios reais de mensuração de investimentos e passa a guiar suas ações pela emoção ou simplesmente por sua intuição. Nesse sentido, é possível estabelecer uma distinção entre mania e bolha; o primeiro refere-se à irracionalidade, enquanto o segundo, ao surto especulativo causado pelo afastamento dos valores fundamentais de uma economia.

Previamente à formação de uma bolha, tem-se a formação de expectativas exageradas, compras e revendas de ativos que marcam um período claro de euforia financeira; a oferta de crédito se expande e a velocidade da circulação da moeda aumenta; mediante alguns sinais específicos - um boato, a divulgação de uma notícia, por um informante privilegiado, que afete a instituição, enfim, qualquer fator exógeno que tenha relevância sobre aquela instituição.

É evidente que a noção de comportamento racional é nebulosa. A pretensa racionalidade dos mercados é mais uma premissa tomada a priori do que propriamente uma constatação. Mercados não são racionais como se afirmam; são apenas estruturas em que as firmas operam e nela se relacionam. Os agentes econômicos, quando providos de informação, tendem à racionalidade; já quando não detêm informação suficiente, agem impulsionados pelo pânico. Há muito disto atualmente, frente às incertezas e ao futuro do desenvolvimento do vírus.

E o que dizer das consequências do momento atual? Uma crise é, sempre e em qualquer lugar, um processo de destruição de riqueza. Por ser eivada de efeitos econômicos, a oferta se reduz, o crédito rareia e há  uma devassidão no multiplicador bancário. Se nossos bancos operassem com alto grau de alavancagem, poderia seguir-se naturalmente um efeito dominó, com o contágio dos demais bancos. Nada disto acontece hoje, ainda que o fluxo de empréstimos para as pequenas empresas se esgotará mais rapidamente e se propagará por toda a economia. A menor renovação de crédito implica menor consumo e mais desemprego. Pode-se até gerar uma recessão mais generalizada, mas tudo indica que tal fenômeno não se instalará. O que não significa dizer que o Brasil terá crescimentos significativos neste ano.

Jairo Saddi, pós-doutor pela Universidade de Oxford, doutor em Direito Econômico (USP), e professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas-Rio e escreve mensalmente neste espaço.