O Globo, n. 32592, 31/10/2022. Opinião, p. 2

Lula tem uma oportunidade de redimir o Brasil



A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva é repleta de significados. Pela primeira vez, um presidente brasileiro foi eleito democraticamente para um terceiro mandato e um presidente disputando reeleição perdeu. Uma vez concluído seu novo governo, Lula terá ficado 12 anos no poder — período superado apenas por um antecessor no cargo, o ditador Getúlio Vargas. É certo que não foi a vitória folgada com que sonhavam os petistas, mesmo assim os 60,3 milhões de votos em Lula foram uma resposta enfática do eleitorado ao autoritarismo tóxico e aos desmandos contumazes do presidente Jair Bolsonaro. Vencida a disputa, Lula precisa agora reiterar por meio de atos, e não apenas de palavras como voltou a fazer ontem, que governará para todos. “O povo brasileiro quer de volta a esperança”, afirmou em seu discurso como presidente eleito. “Somos um único país, um único povo, uma grande nação. A ninguém interessa um país dividido, em estado de guerra.” Ninguém, disse ele, está acima da Constituição. Foi um bom começo.

O sucesso da campanha petista traz um motivo para otimismo e outro para preocupação. Otimismo pela possibilidade de que a aproximação do centro político que se viu na reta final do segundo turno dê um rosto mais pragmático e menos ideológico ao novo governo. Além da contribuição inestimável do vice, Geraldo Alckmin, Lula só tem a ganhar abrindo espaço a figuras como Simone Tebet ou Marina Silva. Ele disse que “não existem dois Brasis” e prometeu que não governaria apenas para o PT. Precisa cumprir a promessa.

Há preocupação sensata com a reação do derrotado e de seus aliados. O triunfo de Lula representa o êxito da democracia, ameaçada nos últimos quatro anos pelo bolsonarismo. Essa oposição não desaparecerá, nem perderá a força que lhe garantem os 58,2 milhões de votos dados a Bolsonaro. A confusão provocada ontem pelas operações da Polícia Rodoviária Federal que impediram vários eleitores de votar parece o início de uma conflagração. Pacificar um país rachado ao meio é um desafio longe de trivial. Mas é essencial, até para que a política volte a ocupar o proscênio nas decisões.

Se os dois mandatos anteriores de Lula servem de guia, pelo menos no comportamento presidencial a cordialidade deverá substituir a grosseria. No governo, programas sociais voltarão a ganhar foco. Na área ambiental, o combate ao desmatamento da Amazônia será prioridade. No cenário internacional, o Brasil voltará a dialogar com as grandes potências. Acima de tudo, ninguém perderá o sono com a possibilidade de o ganhador da eleição de 2026 não assumir em janeiro de 2027.

Mas isso é o mínimo. Os desafios do Brasil continuam gigantescos, e há inúmeras dúvidas sobre o terceiro governo Lula. O país que ele passará a comandar em dois meses é totalmente distinto daquele de 2003, quando chegou pela primeira vez ao Palácio do Planalto. No mundo, o risco de recessão é iminente. Aqui, o quadro é de inflação renitente, baixo crescimento, juros altos, bomba fiscal, fome e miséria. Desta vez, o termo “herança maldita” é mais adequado para definir o país do que a propaganda petista sempre tentou fazer crer sobre o Brasil recebido de Fernando Henrique. A situação exigirá diagnóstico preciso, clareza na definição de prioridades e competência na execução das políticas públicas. É justamente nesses pontos que a eleição de Lula também causa apreensão.

Qual Lula governará? O social-democrata da primeira metade do primeiro mandato? Aquele que defendeu um ajuste fiscal de longo prazo capaz de reduzir a dívida pública, aumentou o superávit primário, promoveu reformas para melhorar o ambiente de negócios, aperfeiçoou instrumentos de crédito e reduziu restrições à concorrência no setor privado? Ou o nacional-desenvolvimentista que veio em seguida? Aquele que apoiou o aumento descontrolado dos gastos, a distribuição de benefícios aos compadres do governo, setores e empresas escolhidos a dedo em troca de apoio ao projeto de poder petista, enfiando o Brasil no buraco sem fundo da corrupção?

Nas próximas semanas, as circunstâncias obrigarão Lula a explicitar e a negociar os itens de seu programa que deixou em segundo plano na campanha. Qual sua proposta para substituir o teto de gastos, que tanto ataca, sem pôr em risco a saúde das contas públicas? Que fará a respeito da reforma trabalhista e das privatizações? Que tem a dizer sobre as reformas tributária e administrativa, fundamentais para garantir ao governo a possibilidade mínima de pôr em marcha qualquer política pública consistente? Qual será o papel dos investimentos do Estado e dos bancos públicos no desenvolvimento, eterno pretexto para mercadejar poder enquanto se abre o flanco à corrupção?

Se, como Lula insiste, sua missão é conversar com todos os setores da sociedade para construir consensos, a hora de começar é agora, ao montar a equipe de governo. Ele precisa reunir nomes com credibilidade suficiente para reerguer o país dos escombros do bolsonarismo. Em especial na economia, área em que o PT jamais fez um acerto de contas honesto com o passado. Lula terá agora a oportunidade de entender que sua vitória não significa uma licença para reviver os devaneios petistas que já levaram o Estado brasileiro à bancarrota. Ele está lá não apenas por ser Lula, mas sobretudo por não ser Bolsonaro. Precisa agir como o líder da coalizão plural pela democracia que o devolveu ao poder, não como o ungido por uma facção política interessada em locupletar-se. Por toda sua história de reveses e superação ao longo da vida, Lula tem plenas condições de reinventar-se para deixar um legado de união e progresso aos brasileiros. Mas um novo governo Lula só resgatará o Brasil do abismo se for mesmo novo.