Título: Haverá isenção no júri de Saddam?
Autor: Aldo de Campos Costa
Fonte: Jornal do Brasil, 24/10/2005, Internacional, p. A12

A comunidade jurídica internacional aguarda com apreensão o desenrolar do primeiro de uma série de julgamentos que envolvem o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein. O governo americano esforça-se para passar a impressão de que apenas presta consultoria ao Tribunal Especial Iraquiano onde Saddam responde pela execução de mais de 140 homens e meninos na cidade xiita de Dujail, em 1982, mas os fatos, entretanto, indicam o contrário. A Suprema Corte Criminal Iraquiana foi criada em dezembro de 2003 pelo administrador dos EUA no Iraque, Paul Bremer. Washington financiou a sede, doando US$ 13 milhões para a obra do moderno edifício, situado coincidentemente perto da embaixada americana e da sede do governo iraquiano. Juízes e promotores foram treinados por especialistas americanos e britânicos, e investigadores por agentes do FBI.

Nenhum desses fatores indicam, necessariamente, que o ex-ditador terá um julgamento tendencioso ¿ o que não significa dizer também que será inocentado das acusações que lhe foram imputadas. A isenção vem com garantias como a presunção de inocência, o direito ao contraditório e à ampla defesa ¿ e essas estão expressamente previstas no artigo 20 do Estatuto do tribunal, de orientação semelhante à das cortes criminais da ONU para a ex-Iugoslávia e Ruanda.

A etnia do juiz Rizgar Mohammed Amin, que instrui o processo contra o ex-ditador, não pode ser apontada como fator de suspeição ¿ pelo menos neste primeiro julgamento, que nada tem a ver com o massacre de milhares de curdos em Halabaja, em 1983.

Nem mesmo a tão discutida legitimidade do Tribunal Especial deve ser fator de desconfiança. Fala-se muito sobre a legalidade de tribunais ad hoc mas desde Nuremberg é sabido que os recursos materiais e pessoais de um país atacado dificilmente têm como ser aproveitados no cenário pós-conflito. Os promotores e juízes locais remanescentes, isto é, que não foram afastados por alinhamento ideológico ao regime deposto, dificilmente têm experiência no julgamento de crimes de genocídio, de guerra, e contra a humanidade, e, por essa razão, precisam ser treinados por colegas estrangeiros. A infra-estrutura física do Judiciário local costuma ficar danificada ¿ quando não tiver sido completamente eliminada.

É claro que a solução ideal seria submeter a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes atualmente sob a jurisdição do Tribunal Especial Iraquiano à Corte Penal Internacional. Esta tem caráter permanente e o respaldo da ONU, mas, na medida em que o Iraque não aderiu ao Estatuto de Roma, e os EUA ainda não o ratificaram, pode-se considerar que o modelo híbrido adotado por Bagdá, com elementos de direito positivo iraquiano e de direito consuetudinário internacional, à semelhança dos estabelecidos em Serra Leoa e no Timor Leste, é razoável. Além de permitir a capacitação do quadro técnico, aumenta, perante a população, a percepção de independência do Judiciário local e propicia a legitimação da própria Corte.

No tocante à possibilidade de aplicação da pena de morte, ressalvando nosso posicionamento contrário sobre o tema, deve-se dizer que os iraquianos têm, desde o Código de Hammurabi, a tradição de cominá-la. Diante disso, procurou-se evitar o paradoxo de Ruanda, onde as cortes locais aplicam a pena capital para crimes comuns, ao passo em que o Tribunal Internacional da ONU para julgar crimes gravíssimos como genocídio, prevê no máximo a aplicação da prisão perpétua. Note-se, ainda, que a Resolução 2200 A da Assembléia Geral da ONU não barra a aplicação da pena capital para os crimes mais graves nos países que não a tenham abolido ¿ como o Iraque.

Finalmente, não se pode censurar a decisão que negou a Saddam ¿ formado em direito pela Universidade do Cairo ¿ o direito de se auto-representar. Estando preso, a chance de intervir em causa própria certamente o incentivaria a fazer digressões impertinentes, levando-o a desferir atos desrespeitosos e atentatórios à dignidade do Tribunal e de seus membros, minando a efetividade da própria defesa.

As condições para que o ex-ditador tenha julgamento honesto, imparcial e isento encontram-se, portanto, no estatuto do tribunal. O grande desafio é demonstrar para o mundo que os instrumentos e as soluções ali consubstanciados serão manejados em função daqueles objetivos.