Título: O fracasso do Estado
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 24/10/2005, Opiniao, p. A16
Concorde-se ou não com o seu resultado, o referendo de ontem - no qual os eleitores foram às urnas decidir se aprovavam ou não a proibição do comércio de armas e munição no Brasil - serviu para uma inquietante constatação: transferiu-se do Estado para a sociedade a prerrogativa de combate à violência urbana. Reafirma-se, pois, o fracasso do poder público de formular e executar uma política de segurança que ponha fim ao medo espalhado por todo o território nacional. O artigo 35 do Estatuto do Desarmamento proíbe o comércio de armas e munição, mas somente entraria em vigor se a população referendasse tal proibição. Os brasileiros não quiseram. Com o ''não ao desarmamento'', optou-se pela permanência do direito individual de adquirir, vender, possuir, portar e utilizar armas de fogo no dia-a-dia. Que a história futura contradiga as evidências do passado recente. A campanha nacional de coleta de armas, iniciada em julho do ano passado com o apoio de organizações não-governamentais e igrejas, havia convencido os brasileiros do contrário. Com ela, cerca de 440 mil armas foram entregues às autoridades. Durante este período, o número de vítimas de armas de fogo diminuiu 8% em relação à média nacional: foram mais de 3.200 vidas preservadas - um feito inédito nos últimos 13 anos. O Brasil detém a marca de 99 mortos por dia. Sem guerra, nem guerrilha, está classificado pela ONU em primeiro lugar no ranking dos países com a maior quantidade de mortes por armas de fogo. Tal liderança soma-se aos 20 mil feridos anualmente e às 50 mil pessoas condenadas a locomover-se de cadeira de rodas.
Desarmar cidadãos honestos significaria tirar-lhes o meio pelo qual se cometem crimes fúteis relacionados ao consumo de álcool, a ciúmes, a uma disputa no volante, a brigas em escolas ou a conflitos em uma partida de futebol. Representaria ainda o início de um longo e árduo trabalho de escasseamento das armas compradas legalmente, que são a principal fonte de suprimento dos bandidos. (Um estudo da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio mostrou que mais de 60% das 86 mil armas apreendidas com criminosos desde 1999 pertenciam originalmente a pessoas sem antecedentes criminais.)
Optou-se, contudo, pelo ''não''. Razões múltiplas levaram a tal resultado, incluindo o confuso sistema de voto - o ''sim'' foi a opção para quem não quis o comércio, uma evidência contra-intuitiva -, os erros estratégicos da campanha pela proibição e até mesmo o contexto político desfavorável ao mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - engolfado por uma crise motivada pelos casos de corrupção e pela inércia de ações do Executivo e do Congresso. Não foram raras as análises segundo as quais o ''não'' simbolizaria mais uma negação ao próprio governo e menos uma resposta à pergunta colocada pelo referendo.
Encerrada a votação, porém, o mais relevante é constatar que, na prática, os cidadãos de bem reafirmaram o seu direito de defender-se individualmente. E, sobretudo, dá o recado claro de que pouco confia nos sofismas oficiais nas questões relacionadas à segurança pública. Uma desconfiança justificável, ressalte-se. Grades nas janelas, vidros fechados no carro, contratação de segurança privada para a proteção da família, restrições na circulação nas grandes cidades durante a noite, entre outras atitudes, evidenciam o flagelo da sociedade diante do medo crescente - enquanto no Rio de Janeiro, por exemplo, traficantes estocam arsenais de grande proporção nas favelas, sem que as autoridades, a despeito de avanços substantivos, consigam deter a ação de criminosos.
Trata-se de uma anomalia crônica de abrangência nacional, contra a qual os governos de todos os níveis parecem não dispor de preparo, conhecimento e disposição de combater com eficácia. Por essa razão, a formulação e a aplicação dos remédios precisariam ser conduzidas com vigor pelas autoridades federais, inclusive porque a sustentação da miséria e da desigualdade, chagas seculares com as quais o Brasil convive, constitui um dos fatores-chave para crimes. Infelizmente, os últimos governos têm tão-somente ações erráticas a mostrar. O Estado brasileiro, insista-se, é o principal responsável pelo medo de cidadãos honestos. E superado o capítulo deste referendo, a população voltará a cobrar a conta pelas promessas descumpridas.