Título: O papa e o crítico feroz
Autor: Luís Corrêa Lima
Fonte: Jornal do Brasil, 24/10/2005, Outras Opiniões, p. A17
Um encontro muito importante ocorreu no dia 24 de setembro, em Castel Gandolfo, próximo a Roma. Bento 16 recebeu um teólogo dissidente, o suíço Hans Küng. Ambos, quando jovens sacerdotes, lecionaram teologia na mesma época na universidade alemã de Tubinga. No Concílio Vaticano II, os dois trabalharam como peritos auxiliando os bispos alemães. Logo no início do pontificado de João Paulo II, Küng teve sua licença de teólogo cassada pelo Vaticano. Ele pôde continuar lecionando em Tubinga, mas não como teólogo católico. Bento 16 e seu antigo colega conversaram a sós por cerca de quatro horas e depois jantaram juntos. O tema do encontro foi o diálogo da fé cristã com as ciências naturais e a busca de uma ética mundial (Weltethos). Küng está convencido de que é possível se construir esta ética a partir dos valores morais compartilhados pelas grandes religiões do mundo e aceitos pela razão secular. O teólogo suíço foi um crítico feroz de João Paulo II, considerando-o um papa de grandes dons e decisões erradas. A ação externa em favor dos direitos humanos, da paz no mundo e do entendimento entre as religiões contrastou com uma prática interna obstruindo reformas, negando o diálogo dentro da Igreja e impondo o domínio romano absoluto. A política de Wojtyla era de tornar a Igreja uniforme e obediente. Por esta razão ele teria nomeado bispos sem abertura de mente pastoral, mas que fossem leais a Roma. O resultado é um episcopado medíocre, servil e ultraconservador - seu legado mais grave.
Pela mesma razão ele teria apoiado movimentos leigos conservadores e facilmente controláveis. Segundo Küng, os grupos voltados para o espírito renovador do Concílio, como a Companhia de Jesus, passaram a tratados como um obstáculo à política de restauração papal. A pregação do papa de combate à pobreza e à indigência era contrariada por sua insistente oposição à pílula e à camisinha. Mais do que qualquer outro estadista, João Paulo II seria parcialmente responsável pelo crescimento populacional descontrolado em alguns países e pela disseminação da Aids na África.
O seu conceito de feminilidade era nobre, mas proibia as mulheres de serem ordenadas e praticarem controle da natalidade por métodos artificiais. A campanha de evangelização papal estaria ligada a uma moral sexual em descompasso com a época e amplamente rejeitada. Que ninguém se iluda, assevera Küng. Mesmo que multidões aplaudissem João Paulo II em grandes encontros, milhões abandonaram a Igreja Católica contrariados. Em suma, um pontificado decepcionante e desastroso. Nem mesmo Ratzinger escapou da reprovação. O antigo colega, teólogo progressista do Concílio, teria se tornado um grande inquisidor.
Apesar do juízo demolidor, H. Küng nunca abandonou a Igreja e se manteve fiel ao sacerdócio. Muitas vezes ele pediu a João Paulo II para se encontrarem pessoalmente, mas não obteve resposta. Bento 16, no entanto, respondeu-lhe prontamente e planejou uma ocasião oportuna. Será que o papa concorda inteiramente com as críticas de Küng? É muito provável que não. Será que concorda parcialmente? É difícil dizer. Mas uma coisa é certa: Bento 16 considera Küng um interlocutor relevante, cujo pensamento merece séria reflexão.
Este encontro destoa da imagem de Ratzinger de conservador intransigente. Ele foi um teólogo avançado na época do Concílio. Depois, teve outra postura à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, sob as ordens de Wojtyla. Agora como papa, ele tem mais liberdade de ação, sem estar sujeito a outra pessoa, mas apenas à sua própria consciência e a Deus. É possível que esteja surgindo um novo Ratzinger. Assim como houve um primeiro e um segundo, pode haver um terceiro. Hans Küng saiu maravilhado do encontro com Bento 16. Declarou que para ambos foi como subir uma montanha em que dos dois lados houvesse obstáculos no caminho. Oxalá no topo desta montanha os dois velhos amigos possam vislumbrar horizontes novos para a Igreja e a para a humanidade.