Título: Fabricando a paz
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 24/10/2005, Outras Opiniões, p. A17

Escrevo este artigo no dia 20 de outubro de 2005. Quando este artigo for publicado, na segunda-feira, 24 de outubro, o referendo estará decidido.

Para os que, como eu, trabalharam, militaram, rezaram e sofreram pela vitória do SIM, os próximos dias serão de grande expectativa. Trata-se da vitória da vida que está em jogo; ou seja, do enfrentamento da vida e da morte. Se ganhar o SIM, ganha a vida. E como esperamos que ganhe, hoje escrevo banhada desta esperança.

Já penso, portanto, no dia que se seguirá à vitória do SIM. Agora que a vida venceu, que a morte perdeu mais uma batalha, o que fazer para fabricar e construir a paz? Como fazer para que no campo fecundado pelo SIM que o povo brasileiro disse à vida, a paz floresça e se torne fruto sempre mais saboroso e maduro para as futuras gerações?

Parto do pressuposto de que a paz se aprende e, mais que isso, se fabrica. A paz, além de raízes sociais, econômicas e políticas, é também um produto cultural e possui profunda ligação com a educação e a aprendizagem. Mas trata-se de um processo educativo, que demanda uma construção ao longo do tempo.

A paz, portanto, não é um estado, mas uma construção processual. Não é algo dado ''a priori'', mas a ser instaurado e construído. Dela não somos meros receptores, clientes ou beneficiários, mas sujeitos e co-criadores. Como construção, a paz é fruto do exercício generoso do diálogo entre as pessoas, que não pode ser delegado ou transferido para outras instâncias. Trata-se de um direito e um dever de todos os seres humanos que são, individual e coletivamente, responsáveis pela sociedade, pelo mundo e pela vida. A paz somente pode ser construída a partir da não-violência. As soluções para o problema da violência terão alcance muito reduzido enquanto permanecerem no campo restrito da resposta à violência.

Faz-se necessário, para conseguir uma resposta eficaz, criar pólos positivos de não-violência e instaurar, em lugar da justiça retributiva, que pode ser fonte de rígida simetria, a justiça restaurativa, que elimina toda violência. A não-violência significa a recusa do ódio e do que destrói o outro; implica a substituição da força bruta da violência por uma outra força: a da verdade e do amor. Como método, a não-violência está baseada no respeito absoluto à integridade das partes implicadas e faz da coerência entre fins e meios a sua estratégia e condição para a sua eficácia, pois renuncia implicitamente à violência como meio.

A paz, por sua vez, se constrói num processo que não se dá fruitiva e calmamente, mas que se encontra atravessado por uma dinâmica dialógico-conflitiva. Os conflitos são compreendidos como integrantes dos processos humanos, sendo determinante a maneira como os mesmos são enfrentados e resolvidos, de forma violenta ou não-violenta. Neste contexto, a paz se apresenta como um conceito dinâmico, que leva a provocar, enfrentar e resolver conflitos de uma forma não-violenta e cujo fim é conseguir construir a harmonia das pessoas consigo mesmas, com a natureza e com os outros. Nesse sentido, a fabricação da paz não é isenta de luta e conflito; ao contrário, é no seio mesmo da luta e do conflito que serão criadas as condições de um diálogo profundo e frutífero, e se conseguirá estabelecer uma nova relação de forças que obriga o outro a reconhecer-me (nos) como interlocutor, senão válido, pelo menos necessário. Luta é a prova de força, energia necessária a toda mudança. É aquilo que faz com que o direito seja respeitado. Assim como a luta e o conflito não se identificam necessariamente com a violência, e podem ser importantes elementos na construção da paz, assim também a agressividade pode tornar-se, neste momento, elemento altamente positivo para que a paz seja de fato fabricada e construída.

No Brasil passado a limpo pelo SIM dado à vida, portanto, a fabricação da paz deverá substituir a fabricação de armas. E o ódio deverá dar lugar ao amor, cujos frutos diretos são a paz e a alegria.