O Globo, n. 32592, 31/10/2022. Política, p. 20

Lula encontrará um terreno minado

Míriam Leitão


A festa da vitória mal começou e é bom que os vitoriosos celebrem. A democracia também se alimenta dessa alegria que se espalha por ruas, avenidas e praças. Ela canta e dança. É bom que haja esse júbilo, afinal foi muito longa e profunda a dor vivida no país. Foi doloroso ver o desmonte diário de políticas públicas arduamente construídas. O dia de hoje é de celebração dos vencedores. A eles, toda a liberdade para comemorar. A hora é essa.

Haverá, contudo, o dia seguinte, e todos os dias seguintes dos próximos quatro anos em que o desafio será manter a capacidade de governar o país, reconstruir o destruído, fazer escolhas sábias, respeitar os limites das contas públicas e plantar colheitas futuras.

O presidente Lula terá pela frente como primeiro desafio uma transição penosa e turbulenta. Ao tomar posse daqui a dois meses encontrará um cenário bem diferente do que se deparou na primeira vez que assumiu a Presidência há 20 anos. Em 2003, o terreno estava arado. As contas públicas estavam ajustadas, reformas haviam sido feitas, desafios, vencidos. O dólar tinha subido muito e elevado a inflação, mas era conjuntural. Lula desfez os temores, o dólar e a inflação caíram. Em 2023, encontrará as armadilhas de Bolsonaro. Ele minou o terreno com bombas perigosas. O novo governo precisará desarmá-las para não ficar com o ônus dessa herança, agora sim, maldita. O mundo também será um ambiente mais hostil do que foi em 2003. O fantasma da recessão ronda não apenas a Europa.

A primeira armadilha é o Orçamento. Ele terá que ser todo refeito nas próximas  semanas. Faltam R$ 52 bilhões para que a nova Bolsa Família mantenha o valor atual. Será preciso recompor muitos gastos. A proposta orçamentária é um pavor. Eles cortaram dinheiro de inúmeros programas sociais. A Farmácia Popular perdeu 60%, a infraestrutura das escolas caiu 97%, o investimento no transporte escolar teve queda de 97%, a verba prevista daria para comprar um ônibus, o gasto com educação de jovens e adultos diminuiu 56%. A verba da merenda escolar não é reajustada desde 2017. A lista dos desatinos orçamentários é enorme e mesmo assim as contas fecham no vermelho.

Será preciso desmontar o orçamento secreto mantendo em outros termos a aliança da governabilidade. Isso exigirá costura política fina. Lula disse que o orçamento secreto é usurpação de poder. Definição perfeita. O Executivo deve ter o poder de executar o orçamento, e ele não pode ser um instrumento do submundo da política.

Reconstrução é a palavra. Como ocorre depois de uma guerra, há escombros do Estado em diversas áreas onde ele é essencial e insubstituível. Não bastará a Lula o seu inegável carisma, nem mesmo a experiência de já ter governado. Lula terá de entender que a frente que se formou para elegê-lo nesse tenso segundo turno  vai além do PT e além dele. Ele foi chamado para liderar a reconstrução do país.

A mais imediata das batalhas é o combate à fome, como ele disse em sua Carta. Será preciso convocar as melhores inteligências para um plano emergencial de resgate dos brasileiros que se encontram nessa situação. A vantagem é que já se sabe o caminho: atualizar o Cadastro Único, reforçar a cooperação federativa até os centros de assistência que estão nos municípios onde moram os cidadãos. Fazer a busca para achar todos os que precisam da rede de proteção social. A base da pirâmide social votou em Lula na esperança desse resgate. O país inteiro precisa que ele aconteça. É ponto fundamental do nosso pacto civilizatório.

Não adiantará a Lula dizer que terá “regras fiscais claras e realistas”, como fez na Carta para o Brasil do Amanhã. Será preciso decidir que âncora fiscal será usada nas contas públicas. O teto de gastos foi na prática revogado pelo governo Bolsonaro. Mas continua a haver a necessidade de dar um horizonte para os financiadores da dívida pública, porque o país tem déficit desde 2014 e uma dívida de 80% do PIB. Não. Não falo da Faria Lima. Os investidores não são apenas fundos internacionais e os operadores. São também todos os brasileiros que colocaram as suas economias em títulos do Tesouro.

É perfeitamente possível conciliar a busca do equilíbrio fiscal com o investimento social e defesa ambiental. O debate econômico já amadureceu bastante para não colocar o governante diante de dilemas fatais, nem os economistas divididos em clubes antagônicos. Porém é indispensável saber escolher dentro das despesas públicas o que cortar, o que manter, o que expandir. Há muita renúncia fiscal e despesas sem qualquer mérito. Esse é o caminho do ajuste e o nome disso é justiça social.