O Globo, n. 32592, 31/10/2022. Política, p. 20

No caminho tem um orçamento secreto

Malu Gaspar


Na campanha, Luiz Inácio Lula da Silva montou uma aliança forte o suficiente para vencer nas urnas, reunindo em torno de si figuras como Simone Tebet e os economistas do Plano Real. Boa parte desses apoios veio por adesão, confiando no legado de Lula e na necessidade de preservar a democracia contra o golpismo de Bolsonaro. Para governar, porém, o petista vai precisar formar um outro tipo de frente ampla, desta vez no Parlamento.

É do Congresso que terão que sair as soluções para os problemas bastante palpáveis que se apresentarão ao presidente eleito a partir desta segunda-feira.

O primeiro é encontrar uma forma de recompor os programas sociais que tiveram orçamento cortado por Bolsonaro, manter o Auxílio Brasil de R$ 600 (no Orçamento só há recursos para R$ 405 mensais em 2023) e ainda pagar o adicional de R$ 150 por criança na escola que ele prometeu.

O programa petista falava em “incluir os pobres no Orçamento”, mas não dizia de onde tirar os recursos para manter o valor do benefício — pelo menos 0,5% do PIB por ano (R$ 51,8 bilhões), segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal. Prometia, também, reajustar o salário mínimo pela inflação, isentar de impostos quem ganha até R$ 5 000 e ainda retomar investimentos públicos em infraestrutura. A questão é como fazer isso.

Acabar com o teto de gastos é parte da resposta,mas ainda assim será preciso achar de onde tirar o dinheiro.

A única certeza é que, seja qual for a estratégia escolhida, para implementá-la o novo presidente vai precisar retomar o controle sobre o orçamento, implodindo a modalidade de emendas de aplicação obrigatória conhecida como orçamento secreto.

Foi o que Lula se propôs a fazer desde o início da campanha, mas a missão não é nada trivial.

Tudo indica que o Supremo deverá ajudar na tarefa, julgando uma ação que está pendente na Corte e declarando essas emendas inconstitucionais — o que daria a Lula a oportunidade de organizar sua base no Congresso. Para isso, porém, ele precisa negociar os parlamentares uma alternativa viável para substituir o orçamento secreto.

A equipe do petista passou a campanha trabalhando em uma proposta que preserve boa parte do valor que eles já recebem de forma automática, mas dê ao Planalto controle sobre a aplicação do dinheiro. Como? Uma possibilidade é exigir que as emendas obrigatórias sejam destinadas a programas escolhidos pelo Executivo, por exemplo.

Calcula-se no entorno de Lula que, se emplacar essa ideia, ele consegue obter maioria na Câmara. Nesse caso, poderia até tentar substituir o atual presidente da Casa, Arthur Lira, por um aliado. Só aí se poderá quanto mais Lula poderá gastar, qual será o valor do Auxílio Brasil — e, portanto, que jeitão terá seu governo.

Só que isso tudo tem que ser negociado ainda antes da posse, com o Congresso nas mãos de Lira e pendurado no orçamento secreto. E aí começam os problemas.

Uma fatia importante dos parlamentares que assumem a partir de primeiro de janeiro ou foi reeleita à base de orçamento secreto, ou já chega a Brasília ansiosa por botar a mão no dinheiro. O deputado Elmar Nascimento, líder do União Brasil (80 deputados) e membro emérito do Centrão, resumiu o humor geral: "Se (o STF) tirar o nosso, a gente tira o (dinheiro) deles".

E acrescentou: se Lula realmente insistir em acabar com o orçamento secreto, vai ter sua primeira grande derrota. "Perde de 400 votos. É impossível ele conseguir".

Especialistas em Centrão acreditam que a ameaça não vinga. Nas palavras de um deles, os deputados e senadores podem ser viciados em orçamento secreto, mas não conseguem viver sem orbitar o governo, ainda mais um governo fresco e popular.

Por essa lógica, basta Lula entregar os cargos certos aos partidos certos, que o resto vem por gravidade. Só que não é bem assim. Bolsonaro perdeu as eleições, mas o bolsonarismo continua.

E para completar o cenário, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro, líder máximo do Centrão e comandante em chefe do orçamento secreto, passou as últimas semanas fechando acordos para garantir sua reeleição. Lula certamente vai lançar um candidato seu para a presidência da Casa, mas vai precisar contornar esses compromissos para tirar Lira do páreo.

Diante de um cenário como esse, a dura campanha eleitoral começa a parecer brincadeira de criança. Lula venceu enormes desafios em seus dois primeiros governos, mas nunca tantos e tão complexos ao mesmo tempo. Agora é a hora de mostrar se o legado vai jogar a favor — ou se vai se transformar em mais um peso.