O Globo, n. 32592, 31/10/2022. Política, p. 21

Terra arrasada pode ser revogada

Ana Lucia Azevedo


Terra arrasada define sem exagero o meio ambiente no Brasil sob Jair Bolsonaro. Mas em nenhum lugar do país a devastação é tão colossal quanto na Amazônia. O combate ao desmatamento do bioma, arrasado a correntão, motosserra e queimada, pode começar com uma caneta. É o que Lula precisa, já no primeiro dia de mandato, para interromper a desconstrução ambiental do atual governo, cujo resultado mais visível é a destruição da floresta a uma taxa hoje quase 75% maior do que em 2018.

Frear o desmatamento da Amazônia é um desafio tão grande quanto a própria floresta. O instrumento com efeitos mais imediatos é a restauração administrativa e institucional da área de meio ambiente do governo. Por meio de portarias e decretos, Bolsonaro incinerou conservação e fiscalização. Lula terá o poder de reverter esses atos.

Poderia começar pelo Decreto 9.760-2019, que dificultou a punição de infratores. Bolsonaro chegou a comemorar a redução de, segundo ele, 80% nas multas ambientais.

O Ibama anunciou recentemente a intenção de anular R$ 16,2 bilhões em multas. É essencial voltar a permitir a destruição de equipamentos de desmatadores ilegais. A proibição veio por ato administrativo, e a revogação pode ser feita da mesma forma.

Foi com instrumentos assim, que encarecem o desmatamento, que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), criado em 2004, teve sucesso no primeiro governo de Lula. Diminuiu em 80% a devastação. O plano foi descontinuado pelo ex-ministro Ricardo Salles, que também paralisou o Fundo Amazônia com R$ 3,2 bilhões no cofre do BNDES. Em janeiro, o fundo poderá ser ressuscitado com a decisão administrativa de retomar as atividades do Comitê Orientador (Cofa) e do Comitê Técnico (CTFA), encerradas por Salles “sem planejamento e fundamentação técnica”, de acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU).

Outra canetada pode acabar com a legitimação de terras griladas por meio do Cadastro Rural Único (CAR), usado como título de propriedade. Quase 100% dos imóveis rurais privados do país estão no CAR, mas ele é autodeclaratório, e o governo não confirma os dados. Uma medida prioritária seria cancelar todos os CARs em florestas públicas. Há quase 200 mil km2 nessa situação, um Paraná inteiro de ilegalidade fundiária e ambiental, segundo André Guimarães, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Não é só aumentar o número de fiscais. É remontar a área ambiental, com fortalecimento institucional estratégico e abordagens inovadoras, como sugere Fabio Feldmann, responsável pelo capítulo ambiental da Constituição. Nem tudo que funcionou nos governos de Lula terá efeito agora. A criminalidade se aprofundou na Amazônia. Nesse contexto, nada seria mais necessário e simbólico que a retirada dos garimpeiros das terras indígenas, a começar pela dos ianomami. A questão indígena é indissociável da ambiental. Acabar com o crime organizado não é missão para um dia nem para cem, mas os sinais do novo governo serão decisivos.