Valor Econômico, v. 20, n. 4966, 24/03/2020. Opinião, p. A12
PIB do setor público, o possível e o necessário
Thiago de Moraes Moreira
Após a divulgação do PIB relativo ao quarto trimestre de 2019 pelo IBGE, o Ministério da Economia destacou em nota que o resultado havia mostrado uma “melhora substancial” em sua composição. Apesar de mais um resultado frustrante (crescimento de 1,1% frente a uma expectativa de 2,5% no início do ano), o governo quis transmitir a mensagem de que o PIB atual seria de melhor “qualidade”.
O fundamento desta tese se ancora na ideia de que o PIB agregado estaria sendo impulsionado pela iniciativa privada, e não pelo setor público. Esta ideia, por sua vez, está diretamente associada a um princípio teórico da corrente econômica ortodoxa denominado de “crowding out”. Em linhas gerais, este estabelece que o gasto público e o privado são concorrentes entre si, ou seja, reduções no gasto público provocariam aumentos de igual magnitude nos gastos privados, considerados pelos adeptos desta corrente como mais eficientes e “saudáveis” para a economia. Na decomposição do PIB agregado apresentada pelo governo, enquanto o PIB do setor público haveria contraído 1,1%, o do setor privado se expandiu 1,8%.
A reação dos economistas em relação à possibilidade metodológica de realizar tal decomposição gerou uma repercussão maior do que a discussão sobre os resultados medíocres do PIB. Embora talvez essa tenha sido a intenção do governo, como professor que leciona a disciplina de Contas Nacionais também me senti instigado a escrever algo sobre o tema.
Muitos economistas afirmaram que seria impossível a separação entre o PIB privado e o PIB público. Na realidade, a desagregação é possível, no entanto de forma distinta daquela adotada pelo ministério, que apresenta erros graves. A metodologia utilizada faz uso dos componentes de demanda do PIB, considerando como PIB do setor privado os valores relativos ao consumo das famílias, exportações, importação, além dos investimentos privados. Com relação a este último, os investimentos são divulgados de forma agregada (privados e públicos) pelo IBGE. Para a desagregação foi utilizada a série trimestral de investimentos do governo construída pelo Ipea, sendo o investimento privado estimado por resíduo. Já a mensuração do PIB público seria resultante do somatório dos investimentos e consumo do governo.
Embora o Sistema de Contas Nacionais estabeleça uma identidade contábil que iguala demanda e PIB, esta é válida apenas para o agregado da economia. Para setores específicos, a identidade perde a validade. O consumo e o investimento realizado pelas famílias, por exemplo, não correspondem ao PIB gerado pelas famílias. O gasto estimula a geração de PIB das atividades que produzem os bens e serviços demandados. Neste sentido, o cálculo da contribuição de setores específicos ao PIB deve mirar a ótica da produção, e não da demanda. O PIB do setor privado ou do setor público decorre do Valor Adicionado gerado por tais setores, o qual resulta da diferença entre o valor de sua produção e dos insumos requeridos para o processo produtivo.
Portanto, a mensuração do PIB do setor público deve considerar o papel das instituições governamentais enquanto ofertantes da economia. A principal oferta do governo resulta da provisão de serviços da “administração, saúde e educação públicas”, os quais constam na série oficial do PIB trimestral. O Valor Adicionado gerado por estes serviços corresponde ao PIB do governo geral (federal, Estados e municípios, incluindo a seguridade social), o qual difere do conceito de setor público. Além do governo geral, o setor público abrange o Banco Central e as empresas estatais. Dessa forma, a metodologia utilizada pelo Ministério da Economia apresenta outro erro crasso ao não fazer estas distinções.
Para o cálculo do PIB do setor público, seria necessário aferir o valor adicionado pelo Banco Central e, principalmente, pelas empresas estatais. Apenas no nível federal são cerca de 130 estatais, incluindo as sociedades de economia mista (tais como Petrobras e Eletrobras), além dos bancos públicos, como Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES.
Um trabalho completo e rigoroso de cálculo do PIB do setor público requer a estimação do valor adicionado de cada uma destas instituições, além das empresas públicas estaduais e municipais, valores que devem se somar ao PIB do governo geral. Estes valores não estão disponíveis e não são facilmente mensuráveis. De todo modo, é sabido que o lucro somado das gigantes estatais mencionadas acima (que compõem parte significativa do PIB gerado pelas estatais) cresceram nominalmente cerca de 70% no ano passado, o que certamente contribuiu para a expansão do PIB do setor público.
Na medida em que a compatibilização dos lucros empresariais com o conceito de Valor Adicionado não é direta, prefiro neste momento me restringir aos valores oficiais divulgados pelo IBGE. O PIB do governo geral se manteve estagnado em termos reais, diferente da queda apontada pelo ministério. Além disso, comparando a variação do PIB do governo com o PIB total desde a eclosão da crise no fim de 2014, denota- se um crescimento acumulado de 1,1% do primeiro, enquanto o segundo registrou queda de -1,5%.
Portanto, não fosse o crescimento do PIB gerado pelo governo neste período, a situação econômica atual estaria ainda pior. As evidências empíricas mostram que não há contraposição entre PIB privado e público. Estes setores podem e devem atuar de forma complementar. Nada mais importante que o crescimento do PIB do setor público no enfrentamento da crise do coronavírus. A ampliação dos serviços de saúde pública, com ampliação de leitos nos hospitais e contratação de novos profissionais de saúde, será de fundamental importância para amenizar os efeitos negativos do coronavírus sobre o PIB privado. O gráfico apresenta a série histórica desde 1996, indicando uma correlação altamente positiva entre o PIB do governo e o PIB total.
Thiago de Moraes Moreira é mestre em economia pela UFRJ, professor de Macroeconomia do Corecon/RJ e da pós-graduação do Ibmec. Contato: eco.thiago@gmail.com.