Valor Econômico, v. 20, n. 4966, 24/03/2020. Opinião, p. A13

Pandemia e ascensão da vida online

Francisco Gaetani
Virgilio Almeida


O avanço do coronavírus está sendo acompanhado em tempo real com base em informações oficiais de todos os países afetados. É possível que aqui e ali os dados estejam sendo subestimados ou insuficientemente notificados, mas no geral o mundo está assistindo a um esforço global de cooperação epidemiológica. Isso está acontecendo mesmo em um momento de refluxo da globalização, crise econômica e ascensão do populismo em alguns dos maiores países do mundo como os EUA, Rússia, Índia e Brasil.

Este cenário, típico das distopias literárias - impossível não pensar no clássico “A Peste” de Albert Camus - e cinematográficos, como “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman, está sendo assimilado pelas várias nações de forma heterogênea, porém com uma aliada importante: a tecnologia. Famílias mantém-se em contato por aplicativos. Reuniões ocorrem por meio de formatos não presenciais. Opções de lazer digital domésticas são acionadas e estimuladas. Autoridades cooperam compartilhando seus dados, pesquisas e análises. Políticos divulgam narrativas mais conciliatórias e solidárias - com as exceções de praxe. Cientistas engajam-se em uma competição positiva por vacinas. Autoridades sanitárias compartilham soluções preventivas e mitigadoras em tempo real.

Quanto mais nos informarmos e cooperarmos mais suave será o impacto desta onda. O país tem capacidade e potencial para isso, se canalizarmos esta grande mente digital coletiva para a multiplicação de nossas forças. Solidariedade e cooperação serão fundamentais. A tecnologia pode potencializar ações positivas de contenção e assimilação, de modo a contribuir para que não caiamos no desespero e na barbárie - com a qual temos flertado muito ultimamente.

Associado ao avanço global da pandemia do coronavírus, percebe-se que a internet e as plataformas tecnológicas passarão a ter um novo papel no dia-a-dia da população. O professor de filosofia da Universidade de Oxford, Luciano Floridi, cunhou há algum tempo atrás o termo “onlife’’ para indicar a existência híbrida da vida contemporânea, onde as barreiras entre o online e off-line são cada vez menos claras e passam a não ter diferenças. Comprar, trabalhar, divertir, estudar, interagir com amigos e família, tudo pode ser feito nos computadores e celulares, como também presencialmente.

O coronavírus vai mudar esse cenário e a vida online terá um papel cada vez mais preponderante. A pergunta natural é, quais os impactos dessa ascensão da vida online para a sociedade brasileira, com sua enorme desigualdade econômica e social? Estamos preparados para essa nova forma de viver, confinados e isolados fisicamente, mas conectados e ligados digitalmente?

À medida que a crise da covid-19 avança, as pessoas vão cada vez mais usar as redes sociais, procurando informações, pedindo ajuda, organizando grupos de apoio, fazendo compras de itens essenciais e buscando orientação médica. As empresas irão expandir o trabalho remoto, tipo home office, reuniões presenciais se deslocarão para as plataformas de vídeo-conferência, escolas e universidades colocarão seus cursos online. Esse é o cenário que se vê nos países onde o coronavírus chegou primeiro e a limitação da proximidade das pessoas, o chamado distanciamento social, passou a ser fundamental para suavizar o processo de disseminação do vírus.

Neste contexto, surgem novas perguntas. A sociedade brasileira está preparada para essa mudança maciça para o mundo online? Como criar os incentivos para mover partes da economia para o mundo digital? O que o governo precisa fazer para possibilitar que a ascensão da vida online não deixe para trás grande parte da sociedade brasileira? Como as operadoras e as big techs poderiam agir, no curto prazo, para aumentar a inclusão online, principalmente nas classes menos favorecidas e com menos disponibilidade para arcar com os custos de conexões?

Paralelamente, as notícias falsas se espalham com mais rapidez e facilidade do que o próprio coronavírus e são igualmente perigosas, pois geram desconfiança, polarizações, desarmonia e danos à saúde pública. E o que pode ser feito para reduzir esse lado negativo da vida online? Quais mecanismos regulatórios são necessários para que as plataformas tecnológicas, como Google, Facebook, Twitter e WhatsApp, tenham regras claras e transparentes para proteger a sociedade brasileira das ondas de notícias falsas sobre a pandemia?

As grandes empresas de tecnologia devem considerar que o ambiente online brasileiro tem suas características próprias. Por exemplo, o WhatsApp não transmite o vírus, mas pode trazer enormes prejuízos à sociedade ao transmitir, de maneira criptografada, mentiras e rumores que dificultam o controle da epidemia. É preciso avaliar mecanismos de regulação para as mídias sociais nestes tempos de crise.

O mundo não será o mesmo quando este surto refluir. A expressão é gasta, mas um “novo normal” emergirá, incorporando vários dos hábitos que estamos colocando em prática como consequência da epidemia. O “online’’ será o novo normal. Como tornar o mundo online mais inclusivo? Precisamos mesmo de tantas viagens? O ensino à distância não deveria ser explorado com mais atenção? A telemedicina, regulada e circunscrita, não precisaria ser encarada de uma forma mais aberta e mais ampla como alternativa para certas interações? O coronavírus vai intensificar essas discussões e acelerar a virada digital. “Como” e “em que direção” dependerão de políticas públicas e de nossas escolhas, individuais e coletivas.

Francisco Gaetani é professor da Ebape-FGV, ex-secretário executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento e ex-presidente da Escola Nacional de Administração Pública.

Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex- secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.