Valor Econômico, v. 20, n. 4966, 24/03/2020.
Finanças, p. C10
A inteligência artificial no mercado financeiro
Pedro Lula Mota
Victor Duran
A ideia de que máquinas caminham para se tornar dotadas de inteligência própria
torna-se mais presente.
Como tudo que ganha
proporções midiáticas, muito do avanço sobre o imaginário popular se faz
envolto por névoas de buzzwords e sopas de letrinhas pouco decifráveis. Machine
Learning, inteligência artificial, redes neurais, deep learning são algumas
das manifestações contemporâneas do secular esforço de tomar decisões com base
em dados da realidade.
Potencializados pelos
avanços de software e hardware das últimas duas décadas, os modelos matemáticos
e computacionais se tornaram poderosos, sendo capazes de identificar sinais
complexos nos diversos tipos de dados. Tais processos decisórios agora
passam a poder ser feitos automaticamente.
Ferramentas que eram
circunscritas a acadêmicos, ganham aplicações práticas poderosas e se tornam
peças essenciais nas mais diversas cadeias produtivas. E no mercado financeiro,
o que será que pode a inteligência artificial?
O questionamento é se
existe no mercado financeiro alguma barreira intransponível para a
quantificação dos processos decisórios ou se esse resultado é apenas uma
questão de tempo.
Um estudo que tenta
responder partes dessa pergunta está disponível na SSRN (repositório de artigos
acadêmicos) - “Man versus Machine: A Comparison of Robo-Analyst and Traditional
Research Analyst Investment Recommendations” compara características das
recomendações de investimento feitas por analistas quantitativos/ automatizados
(robo-analysts) e analistas humanos.
Dentre os critérios de
comparação estava a presença de viéses de curto prazo nas recomendações de
investimento; a distribuição das sugestões de comprar, vender e segurar um
ativo; a variedade dos produtos recomendados; e também os resultados em termos
de rentabilidade. O estudo indica que os robo-analysts tiveram melhor
desempenho, e esse talvez seja um bom convite para a discussão.
Fora do Brasil as
estratégias quantitativas já se fazem bastante presentes. Por exemplo,
desde 2017 que o “Wall Street Journal” declara a “dominação” desse tipo de
estratégia nos Estados Unidos. Enquanto isso o mercado de gestoras
quantitativas no Brasil ainda engatinha, sendo encabeçado por alguns expoentes,
mas que ainda administram uma parcela muito pequena do dinheiro investido em
fundos: 0,04% em agosto de 2018, contra 31% nos EUA, segundo levantamento
da Giant Steps.
Talvez no Brasil
existam particularidades que algoritmos ainda não conseguem lidar com
facilidade. Mercados imaturos, dependência histórica da renda fixa e o número
incipiente de instrumentos financeiros mais complexos podem ser barreiras para
a implementação de algoritmos que funcionam bem em outros contextos. Um
processo de “tropicalização” dessas ferramentas pode se fazer necessário. Por
outro lado, operar mercados globais é cada vez mais fácil, sendo inclusive uma
tendência dentro dos principais fundos multimercados brasileiros. Assim,
observa-se que provavelmente a maior barreira ainda está relacionada à nossa
tradição analógica e pautada em decisões humanas, do que mesmo uma limitação
operacional.
A escassez de fundos
quantitativos pode ser explicada pelo desafio do “investidor brasileiro
tradicional” em confiar o seu dinheiro a uma máquina, o que se deve tanto ao
caráter de “caixa preta” de alguns modelos quanto à névoa mencionada no
primeiro parágrafo. Parte dessa resistência, que definitivamente não se
manifesta apenas no nosso mercado local, pode ser acalentada pela
implementação de estratégias híbridas. A abordagem “quantamental” (junção das
palavras quantitativo e fundamental) é uma das que têm ganhado espaço, visto
que é a combinação de dois mundos complementares.
Gestores que utilizam
inteligência natural nos seus processos decisórios podem se beneficiar de
ferramentas quant em processos assessórios à decisão de onde alocar os
recursos. Foi o Vishwanath Tirupattur, chefe de pesquisa quantitativa do Morgan
Stanley que afirmou: “o quantitativo não é mais apenas para quants”.
Marco Lopez de Prado
descreve em “Ten Applications of Financial Machine Learning” exemplos de como o
profissional do mercado financeiro pode aplicar o aprendizado de máquina. O
primeiro exemplo é na previsão dos preços dos ativos. É o que vem à mente
primeiro, o que mais se discute e para onde a maioria das críticas às
ferramentas quantitativas se direcionam. Os outros nove, por outro lado, não
têm a ver diretamente com precificação. As tarefas são as mais diversas:
de gestão de risco à identificação de estratégias falsas, passando por
dimensionamento da exposição direcional, estratégias de execução e construção
de portfólios.
A grande questão é que
algoritmos de inteligência artificial são extremamente competentes quando
o que está por trás do ambiente decisório não muda muito. Falta ainda aos
modelos de inteligência artificial a transferência de aprendizado entre
diferentes domínios do saber, o que se dá de maneira natural para os seres
humanos. Temos como exemplo as analogias, que usamos constantemente
enquanto estamos aprendendo algo novo. Analogias ainda não possuem um
correlato claro no mundo da inteligência artificial.
Um algoritmo de
otimização de portfólios utilizado em 2008 provavelmente teria seu desempenho
prejudicado nos anos subsequentes com o aumento do protagonismo dos Bancos
Centrais e suas políticas de “quantitative easing” (QE) pós-crise das
hipotecas. Analistas humanos por outro lado conseguem vislumbrar os
efeitos dessas políticas a partir da análise de períodos semelhantes.
Feliz ou infelizmente
as forças subjacentes às variações de preço nos mercados financeiros estão em
constante mudança, principalmente quando pensamos em macroeconomia e ciclos
econômicos. Ainda não é possível, por exemplo, construir uma base de dados que
permita modelar a derrocada de uma grande potência mundial. O que não quer
dizer que não haja espaço no mercado para a inteligência artificial nos moldes
atuais.
Vimos alguns exemplos
de onde é possível aplicar tecnologias quantitativas nos mercados financeiros e
a tendência é certamente de alta, particularmente no Brasil.
Pedro Lula Mota é
gestor de portfólios da Vérios Investimentos
Victor Duran é cientista de dados da Vérios Investimentos
E-mail: pmota@verios.com.br
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