O Globo, n. 32534, 03/09/2022. Mundo, p. 19

Ataque a Cristina une o Peronismo, mas não o país

Janaína Figueiredo


A tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira pelo brasileiro Fernando Sabag Montiel, deixou o país em estado de comoção e levou milhares de seguidores da governista Frente de Todos, aliança entre peronistas e kirchneristas no poder desde 2019, às ruas da capital e outras cidades, para repudiar um fato inédito de violência política na História argentina. Foi uma resposta política — e não de toda a sociedade — a um atentado que não uniu os argentinos, pelo contrário.

— Convocamos à unidade nacional, mas não a qualquer preço. O ódio, do lado de fora — declarou Alejandra Darín, irmã do famoso ator Ricardo Darín e presidente da Associação de Atores Argentinos, diante de uma multidão que gritava contra os “gorilas” (antiperonistas), os meios de comunicação e outros considerados inimigos pelo governo

.Unidos na condenação

Rodeada de ministros, governadores, sindicalistas, Mães e Avós da Praça de Maio, Alejandra leu um documento que condenou discursos de ódio e pediu à imprensa nacional que reflita sobre o que aconteceu e acontece no país, numa clara tentativa de responsabilizar a mídia — e a oposição —pelo clima de violência política. A manifestação também contou com a participação de pessoas que se uniram ao protesto de forma espontânea, para defender a democracia e a paz social. Mas este setor, claramente minoritário, foi ofuscado por uma maioria altamente politizada, e por um discurso oficial que esteve dirigido à base de apoio de um governo que , segundo as últimas pesquisas divulgadas no país, tem 80% de rejeição. Em frente à Casa Rosada estiveram representantes das principais centrais sindicais e movimentos estudantis que apoiam o governo. Os manifestantes gritavam palavras de ordem como “Sempre com Cristina”, “Nunca mais”, “Eles são os responsáveis pelo ódio que geram”, “A democracia é nossa e se defende” e “Aqui não desistimos ”. O presidente Alberto Fernández e a vice-presidente, que se reuniram pela primeira vez desde que assumiram o poder na residência de Cristina, no bairro portenho da Recoleta, não participaram do ato.

Quase todas as lideranças políticas condenaram o atentado, mas, pouco depois, os debates começaram pelas divergências entre opositores sobre como se comportar diante de uma clara e imediata utilização política do episódio, que poderia ter terminado em tragédia. Para muitos, a tentativa de magnicídio poderá, finalmente, tornar-se a tábua de salvação da aliança entre peronistas e kirchneristas que, de um dia para o outro, voltou a ser considerada, nos corredores da Casa Rosada, competitiva para as eleições presidenciais de 2023.

Disciplina Peronista

Os peronistas, fiéis a suas tradições, mostraram-se absolutamente coesos. Se em outros momentos se tornaram evidentes as fissuras e intrigas internas, após o ataque a Cristina, a disciplina partidária foi total. Alguns foram mais duros em suas declarações, como o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, discípulo da vice, que vinculou o ataque às investigações judiciais sobre suposta corrupção que envolvem Cristina e seus filhos. O governador, um dos políticos com pior imagem no país, referiu-se especificamente ao pedido do Ministério Público para que Cristina seja condenada a 12 anos de prisão, por sua suposta participação numa associação ilícita que favoreceu empresários amigos em licitações de obras públicas.

— Não posso deixar de associar [o ataque] ao que ouvimos de um expoente do Judiciário que também busca expulsá-la da vida política proibindo-a de participar como candidata — afirmou Kicillof. Já o ministro do Interior, Wado de Pedro, kirchnerista de primeira hora, escreveu em sua conta na rede social Twitter que “não é um loco solto [o brasileiro Fernando Sabag Montiel, que tentou assassinar a vice], nem é um fato isolado: são três toneladas de editoriais em jornais, televisão e rádios dando espaço a discursos violentos. São os que semearam um clima de ódio e revanche, e hoje colhemos este resultado...”.

No Congresso, a aliança governista apresentou um pedido para que hoje seja realizada uma sessão extraordinária para votar uma resolução de condenação ao atentado. Até ontem à noite, não estava confirmado se a oposição participará da iniciativa. Após falas enfáticas de condenação ao ataque por parte de líderes de peso, entre eles o ex-presidente Mauricio Macri, a aliança opositora Juntos pela Mudança não conseguiu chegar a um consenso sobre um documento público de repúdio à tentativa de assassinato de Cristina. Na extrema direita, o deputado Javier Milei, fenômeno eleitoral de 2021 e único candidato já confirmado para as presidenciais de 2023, optou pelo absoluto silêncio.

‘Brincando com fogo’

Segundo fontes, o principal obstáculo para alcançar este consenso foi a posição de Patricia Bullric, ex-ministra da Segurança do governo Macri e, para cada vez mais analistas, nome forte na disputa pela candidatura à Presidência da oposição em 2023. Bullric representa uma ala mais à direita da aliança opositora, liderou os protestos contra a quarentena durante a pandemia e, após o ataque a Cristina, afirmou que “o presidente está brincando com fogo: ao invés de investigar seriamente um fato grave, acusa a oposição e a imprensa, e decreta um feriado para mobilizar militantes”. Governadores da oposição, entre eles os das províncias de Mendoza e Jujuy, se opuseram publicamente ao feriado decretado pelo presidente, “em solidariedade ao ataque a Cristina”. “Temos de trabalhar com normalidade, essa é a melhor maneira de repudiar qualquer expressão de violência e aderir ao pedido de paz social”, disse, em nota, o governo de Mendoza. No resto do país, houve reações similares. Nas ruas de Buenos Aires, comentários sobre a decisão do governo, para muitos inoportuna, em momento em que muitos argentinos precisam trabalhar para garantir necessidades mínimas de alimentação. Nas classes média e média alta, a rejeição ao feriado foi grande.

Em conversas informais, grupos de WhatsApp e outras redes sociais, os debates foram inflamados. Muitos argentinos duvidam de que o brasileiro Fernando Sabag Montiel tenha, de fato, tentado matar a vice-presidente.

As versões sobre suposta armação por parte do governo para vitimizar-se e recuperar apoio popular estão por todos os lados. O episódio mais traumático da política argentina em muito tempo é discutido por adolescentes, jovens, adultos e idosos de todas as classes sociais. Num país no qual os partidos políticos, como em muitos outros da América Latina, perderam credibilidade, assim como a Justiça e o Congresso, a desconfiança é enorme e aprofunda ainda mais o clima de tensão social.