Título: O medo vence o Estado
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 25/10/2005, Opinião, p. A8

Superado o calor imediato do referendo de domingo, quando os eleitores brasileiros foram às urnas para optar ou não pela proibição do comércio de armas e munição no Brasil, fica mais evidente uma convicção: o medo foi o maior vencedor das urnas. Os temores reafirmados por uma sociedade assustada com a insegurança e com a perene ameaça de ataques de bandidos (promovidos em qualquer lugar e a qualquer momento) uniram os dois lados em combate nas urnas. Embora balizadas por propósitos e argumentos distintos, as campanhas do ''não'' e do ''sim'' tinham o medo como fio condutor. Eram duas apenas na forma aparente. Basta lembrar que eleitores mudaram de lado com especial rapidez, evidenciando a mudança tênue que tais escolhas significavam.

Se o medo venceu, a derrota coube ao Estado, e não aos cidadãos que votaram pelo ''sim'' à proibição do comércio de armas. A mensagem deste referendo, emitida pelos mais de 96 milhões de eleitores, é inquietante e enfática: os brasileiros estão apavorados, e o poder público não tem sido capaz de garantir-lhes segurança em todos os níveis. Desse tenebroso sentimento de incerteza e descrença padece a maioria dos brasileiros, independente de renda, gênero, naturalidade ou etnia.

O medo, lamente-se, vem sendo democraticamente distribuído para todos os cidadãos de bem. Avança de maneira perturbadora sobre as vidas de moradores do morro e do asfalto. Contribui para a exclusão tanto da periferia quanto dos bairros mais abastados. Entre os primeiros, revela-se, por exemplo, na impossibilidade de trafegar livremente em meios de transporte público. Dos demais, traduz-se no espantoso crescimento da contratação de segurança privada para a proteção da família.

Concorde-se ou não com as intenções, os métodos e o resultado, o referendo das armas teve o mérito de reconduzir à agenda nacional um debate dramático e fundamental para o país. As mazelas crônicas da segurança pública, infelizmente, recebem uma maior atenção da população, da imprensa e, sobretudo, dos governos somente quando se eclodem crises mais graves. O referendo reafirmou a necessidade de uma discussão perene, destinada a produzir ações efetivas para pôr fim ao medo espalhado por todo o território nacional.

Tal exigência ultrapassa as fronteiras partidárias, assim como supera os limites de mandatos específicos. É um equívoco, portanto, atribuir o ''não'' tão-só a uma rejeição ao governo Lula - o Brasil convive com o flagelo na segurança pública há pelo menos três décadas. Tampouco é um recado apenas para os atuais ocupantes do poder. Antes, significa um grito de socorro e uma cobrança (sob as regras do jogo democrático) por mudanças a serem promovidas pelo poder público. Vale para este e para os próximos governos. Serve para autoridades federais e estaduais.

Resta a convicção de que mudanças substantivas exigem um trabalho de longo prazo. Implicam mudanças de natureza constitucional (como o funcionamento das polícias Militar, Federal e Civil). Requerem a redução da latente corrupção que envolve a política e o aparato policial. Exigem uma real solução contra as desigualdades, o desemprego, o processo de favelização das grandes cidades e as carências de habitação e saneamento - carências nacionais que estimulam a violência, alimentam o apetite de criminosos e conduz o país à banalização do medo. Um preço alto demais para o Brasil suportar por mais tempo.