Título: De referendos e `mensalinhos¿
Autor: Milton Temer*
Fonte: Jornal do Brasil, 25/10/2005, Outras Opiniões, p. A9

Fui derrotado com os que votaram ''sim'', mas ainda não sei o que perdi neste referendo sobre o comércio de armas.

O que seria facilmente palatável, se limitado à votação no Congresso, começou a gerar desconforto. Por que todo esse investimento de recursos e tempo em cima de algo que não estava na ordem do dia? No debate sobre o combate à violência, o que pontificava não era a proibição do comércio de armas, que continuará sob intenso controle, a despeito do resultado. O que pontificava era a dicotomia entre as prioridades que separavam esquerda de direita; democratas progressistas de conservadores e fascistas. Os de esquerda, pautando-se na ação preventiva em áreas conflagradas, onde são mais evidentes as enfermidades sociais. Exigindo mais distribuição de renda e menos subalternidade governamental aos discutíveis compromissos de dívidas públicas com a agiotagem internacional, como forma de minorar a desigualdade social. Exigindo mais presença de um Estado democrático, com saúde e educação gratuitas e de qualidade, para além de uma política habitacional eficaz. Os de direita, preocupando-se exclusivamente com o reforço do aparelho repressivo. ''Bandido bom é bandido morto'', proclamavam seus principais porta-vozes.

As campanhas do referendo terminaram por caminhar pelo mesmo viés da dicotomia. Ambas assumiram caráter conservador, preocupadas essencialmente com a melhor forma de proteger o ''cidadão de bem'' do ''bandido''. E, neste cenário, a discussão fugiu da racionalidade política, com vantagem para o ''não''. Não é demasia, portanto, interpretar o resultado como uma declaração cidadã de absoluta falta de confiança no governo que ora administra o aparelho do Estado. Por que entregar seu destino a um agente público que desmonta, com cortes no orçamento, os equipamentos estatais, estimulando educação e planos de saúde e de previdência complementar privados, como se os reconhecesse mais eficientes que o público?

É conseqüente, portanto, admitir que a vitória do ''não'' significou desconfiança em personalidades e entidades envolvidas na campanha do ''sim'' do que afirmação de espírito belicista da cidadania. Entidades, aliás, especializadas em eventos espalhafatosos, como caminho para garantir aportes crescentes às suas já gordas e descontroladas receitas. O que explica o fato de, no Rio de Janeiro, a despeito de Lula, Garotinho, Viva Rio e Rede Globo - esta, através de seus mais expressivos formadores de opinião - se empenharam intensamente pelo ''sim'', a derrota tenha sido tão fragorosa.

Sessenta e quatro a 36% representam muito mais que simples rejeição à proibição do comércio de armas. Representam rejeição à ordem estabelecida. Prenúncio de comportamento ainda desconhecido, nas próximas eleições.

Marcada a posição sobre o referendo, me reporto à matéria exclusiva do JB quanto ao ''mensalinho'' que estaria rendendo manchetes contra o senador Geraldo Mesquita. Primeiro, para louvar a capacidade dos repórteres Hugo Marques e Sergio Pardellas. É preciso muita competência para, a partir de Brasília, conseguir construir, lá no Acre, fontes tão generosas de informação permanente sobre o senador. Não é fácil. Depois, para fazer o registro. É da tradição dos partidos de esquerda recorrer à militância como fonte de receita que dispense dependência de empresas privadas. E isso corresponde a um conceito antagônico ao de ''mensalinho'', que pressupõe apropriação privada, por parte do parlamentar, de recursos alheios. A contribuição militante se destina às ações políticas. À ajuda voluntária ao movimento social organizado. É recurso individual que o militante aceita ceder, opção inexistente nas relações patrão-empregado, normais nos mandatos da direita.

O PT, limpo e de lutas, exigia dos seus candidatos compromisso na contribuição de 30% do salário, para além da cessão de cargos no gabinete, a serem preenchidos por funcionários do partido. Exigência correta e sadia. Sem fundamentação legal, mas coberta de absoluta legitimidade na relação que, quando afrouxada, levou o partido à conivência criminosa com a ''contabilidade paralela''. De qualquer forma, o próprio P-Sol, em acordo com Geraldo Mesquita, encaminhou representação ao Conselho de Ética do Senado, propondo investigações. Será excelente oportunidade para debater essa ''ilegalidade'' que a esquerda combativa faz questão de preservar.

*Milton Temer (jmtemer@hotmail.com) escreve às terças no JB