O Globo, n. 32536, 05/09/2022. Política, p. 10

Percepções

Rafael Soares


A classe política é mais associada à corrupção no Brasil do que entidades da sociedade civil, como empresas, ONGs, movimentos sociais e igrejas. Na esteira dos desdobramentos de investigações sobre pagamentos de propina que promoveram uma reorganização de forças pós-urnas em 2018, duas pesquisas realizadas pelo Ipec, a pedido do GLOBO, evidenciam a avaliação dos brasileiros. No quadro geral, a prática só fica atrás do desemprego na lista de problemas que mais afligem a população. Um olhar detalhado revela ainda que Câmara dos Deputados, Senado e o Executivo em suas três esferas (federal, estadual e municipal) são vistos como mais corruptos, na comparação com a compreensão geral sobre o tema.

Para 36%, a corrupção é um dos três desafios mais urgentes do Brasil. Um levantamento complementar destrinchou a questão. Com base nas respostas — os entrevistados podiam associar “muita”, “alguma”, “pouca” ou “nenhuma” corrupção aos itens pesquisados —, o instituto elaborou um índice de percepção sobre o tema, que no geral ficou em 77 (quanto mais perto de 100, maior é a associação com corrupção). No caso da Câmara, o resultado foi 92 (76% vinculam “muita corrupção” à Casa); quanto ao Senado, 89; governos estadual (86), federal (84) e municipal (80) vêm em seguida.

Maior entre mulheres

A avaliação sobre entidades da sociedade civil é distinta. No caso das empresas, o índice calculado é de 67, patamar semelhante ao de ONGs e igrejas. Nas nuances, no entanto, há uma diferença: enquanto 24% veem “muita corrupção” nas companhias, o resultado é de 31% para as organizações não-governamentais e de 32% para as instituições religiosas. Entre as instituições de Estado, é a Polícia Federal quem se sai melhor: 68 no índice calculado pelo Ipec, com 31% de percepção de muita corrupção.

— De fato ocorrem escândalos de corrupção mais graves e em maior quantidade envolvendo os políticos. No entanto, só existe corrupção porque um recebe e outro paga. No Brasil, como vimos na Lava-Jato, geralmente quem paga são grandes empresas privadas. Mas o brasileiro só vê a corrupção do lado do Estado. Outro ponto é que as empresas são, em sua maioria, de pequeno porte, comerciantes, microempreendedores. São nelas que o brasileiro pensa, não nas grandes empreiteiras — avalia o diretor da ONG Transparência Brasil, Manoel Galdino.

O olhar sobre a Câmara dos Deputados pode ser explicado a partir do noticiário. A Casa foi o epicentro do mensalão, mecanismo que instituiu repasses ilícitos em troca do apoio a votações no primeiro governo do ex-presidente Lula (PT), e teve parlamentares envolvidos também na Lava-Jato, que esquadrinhou relações tortuosas entre políticos, órgãos com presença do governo e empresas. Mais recentemente, veio à tona o orçamento secreto, dispositivo desenvolvido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) para pacificar a relação com o Congresso, por meio da distribuição de recursos via emenda parlamentar, de forma desigual e sem transparência. Para 2023, a previsão orçamentária com o expediente é de R$ 19,4 bilhões.

A sensação geral sobre corrupção é maior entre mulheres e mais pobres. No recorte de renda, a percepção vai crescendo conforme os recursos familiares disponíveis a cada mês vão diminuindo. A pesquisa revela ainda uma clivagem religiosa: evangélicos avaliam a situação com menos gravidade, na comparação com católicos e os praticantes de outras religiões.

A observação detalhada sobre a percepção dos brasileiros a respeito de corrupção no governo federal expõe conexões com a avaliação da atuação do presidente Jair Bolsonaro (PL), em campanha à reeleição. Entre as mulheres, por exemplo, 69% consideram que há “muita corrupção” no governo federal —no mundo masculino, o índice é de 59%. Por outro lado, 6% dos homens consideram que não há “nenhuma corrupção”, contra 2% das mulheres. Segundo o Datafolha, 55% das mulheres dizem que não votariam “de jeito nenhum” em Bolsonaro, enquanto a rejeição é de 48% entre os homens. Entre os evangélicos, grupo em que o chefe do Executivo tem desempenho nas pesquisas acima de sua média, 53% veem “muita corrupção” —a taxa é de 63% entre católicos e de 72% entre praticantes de outras religiões.

Corruptos são os outros

A atual gestão enfrentou a prisão do ex-ministro Milton Ribeiro (Educação), por suspeitas de envolvimento em um esquema irregular de repasses de verbas para prefeituras, além de denúncias de pagamento de propina em meio a negociações do Ministério da Saúde para a compra de vacinas — ambos os casos estão sob investigação, e os envolvidos negam irregularidades. Bolsonaro, por sua vez, já levou para a campanha eleitoral os desvios bilionários identificados na Petrobras durante as gestões petistas, tema do qual Lula vem tentando se esquivar.

— A percepção sobre a realidade é diretamente influenciada por quem está no poder. Ou seja, quando você gosta de alguém que está no poder, tende a avaliar as ações e decisões do governo de forma otimista. Por isso, os segmentos que mais votam no presidente veem o governo como menos corrupto — complementa Galdino.

No dia a dia, apesar da afirmação robusta de que corrupção é uma questão grave, e da vinculação do problema à classe política, o brasileiro não se enxerga como corrupto. Só uma a cada dez pessoas admitiu já ter pago propina, dado algum presente ou feito favores para se beneficiar ou obter vantagem em algum serviço público. A situação em que mais pessoas admitiram o suborno foi para receber atendimento médico: 11% afirmaram que já pagaram a um profissional de saúde ou funcionário do hospital público para obter assistência.

Na direção das soluções, O GLOBO convidou a Transparência Brasil e o Instituto Não Aceito Corrupção para apresentar as ações anticorrupção que devem ser adotadas pelo próximo presidente da República. A primeira delas é acabar com o orçamento secreto. Outras propostas preveem mudanças nas leis de licitação e improbidade administrativa, a limitação do uso de cargos de livre nomeação, o estabelecimento de mandato para o diretor-geral da Polícia Federal, e a alteração na forma de escolha do procurador-geral da República.

— A corrupção jamais será totalmente extinta, como jamais será extinta toda a violência. Mas o controle dela deve ser retomado de forma planejada e estratégica. Precisamos diminuir as oportunidades para a prática da corrupção e reduzir a impunidade —diz o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu.