Valor Econômico, v. 20, n. 4967, 25/03/2020.
Brasil, p. A4
‘Primeiro tem que preservar a vida, depois a economia’
Entrevista: Henrique
Meirelles, Ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central
Não foram poucas as crises que Henrique Meirelles administrou, ou à frente do
Banco Central, ou à frente do Ministério da Fazenda. Como secretário da Fazenda
do maior Estado do Brasil, Henrique Meirelles tem trabalhado cerca de 18 horas
por dia. Em entrevista ao Valor, por videoconfência, via Skype, ele nega
que a tese do Estado mínimo tenha caído por terra e defende a necessidade de
manutenção da austeridade fiscal e do teto e gastos. Porém, o também liberal,
como o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma sem titubear que a
prioridade, agora, é a crise de saúde pública e a preservação de vidas. Por
isso, o governo federal precisa, sim, aumentar gastos, investir o colchão
do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal.
Meirelles defende uma
ampla coordenação nacional, em três eixos; saúde, economia e abastecimento.
Cabe a Jair Bolsonaro fazer essa coordenação, o que ainda não ocorreu,
reconhece Meirelles. O secretário tem participado de reuniões frenéticas, com
todos os titulares da Fazenda estaduais, e está sendo definida a regra de
distribuição dos recursos federais, para se evitar guerra fiscal e
confrontos. Estamos todos no mesmo barco, sustenta. O governo, prega, tem que
pagar salários de trabalhadores formais e, no caso dos informais, deve dar um
auxílio mensal. Os vulneráveis precisam da rede de proteção social, aos moldes
do Bolsa Família, com pagamento mensal. São situações distintas e é
preciso que o governo enderece cada um deles com o diagnóstico correto, números
transparentes e ações eficazes.
A seguir, os
principais trechos da entrevista:
Valor: Nesta crise da
covid-19, sem precedentes, o governo federal e a autoridade monetária estão
tomando medidas corretas?
Henrique Meirelles: As
medidas estão na direção correta. Tem que ser providenciado o aumento de
liquidez da economia, aumento do direcionamento do crédito. E o governo federal
deve entrar na parte do emprego e assistência social, manutenção dos
trabalhadores que estão em inatividade. A parte de aporte de recursos aos
Estados é crucial. O governo central tem o Banco Central e provê liquidez e
recursos para a economia, controlando a moeda, o que é fundamental num
momento como esse, como mostraram as crises de 2003 e 2008. Em 2008
identificamos a causa da crise e qual o canal de transmissão. Quando houve o
colapso de linhas de crédito para o Brasil, o BC entrou na fonte do problema. E
aí tem que ser forte o suficiente, e ancorado na realidade.
Entro nesta questão
técnica só para mostrar que tem que se identificar a raiz do problema. Não
adianta anunciar só um pacote de medidas. Agora, a raiz da crise é um vírus,
uma doença que, em última análise incapacita as pessoas. Quais as consequências
disso? Canal o canal de transmissão para a economia? Há dois. Primeiro, as
pessoas que param
Entro nesta questão
técnica só para mostrar que tem que se identificar a raiz do problema. Não
adianta anunciar só um pacote de medidas. Agora, a raiz da crise é um vírus,
uma doença que, em última análise incapacita as pessoas. Quais as consequências
disso? Canal o canal de transmissão para a economia? Há dois. Primeiro, as
pessoas que param de trabalhar. Segundo, medidas preventivas corretas,
porque a prioridade agora é salvar vidas, aconselham as pessoas - ou determinam
- a não saírem de casa. Isso gera um impacto brutal na economia, evidente.
Temos a causa, o coronavírus, e temos a consequência, que as pessoas e os
governos têm que proteger as vidas. Vamos pagar um preço econômico.
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https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/25/primeiro-tem-que-preservar-a-vida-
Valor: O sr. está
enfatizando a necessidade de diagnóstico correto. Há uma sensação de ruídos na
equipe econômica, os Estados não sabem como será operacionalizada essa ajuda
financeira.
Meirelles: Não há
dúvida de que temos um problema. A sociedade e os agentes econômicos estão com
muitas dúvidas. Isso é um fato. De fato, é uma avaliação de medidas muito
difíceis, porque a causa é um vírus. Todos os países estão lidando com isso
gradualmente, na medida em que começa a ficar claro, para as diversas
autoridades, qual impacto está acontecendo. Evidentemente é necessário, sim,
que haja uma coordenação, e grande, do governo nessas duas questões. Temos
um problema de saúde e temos um problema de impacto econômico. As duas
coisas são gravíssimas, porque a pessoa pode morrer de doença, mas também de fome.
São problemas relacionados. Fome causada por desemprego e falta de salário: aí
vem a medida dos R$ 200, etc., ajuda do governo. Mas além disso você pode ainda
ter uma crise num terceiro fator: abastecimento. Então temos que ter
conjugação de comunicação muito clara entre as autoridades da saúde, as
autoridades de economia e aquelas de abastecimento. É tudo muito novo, é
preciso que haja essa ação com o anúncio. O anúncio precisa ser forte sim, mas
precisa estar ancorado numa ação muito eficaz, para inspirar confiança. Não
adiantam só frases fortes ou volumes de dinheiro, se eles não atuam na
causa do problema. Usando a analogia da doença: tem que diagnosticar bem e usar
o remédio certo.
Valor: Sua percepção é
de que essas interligações, dos problemas de saúde e da
economia, está afinada?
Meirelles: Precisa
integração melhor das três áreas: saúde, economia e abastecimento. Tem que ter
uma coordenação central destas três áreas. Exemplo: está faltando máscara nas
farmácias. Mas a fábrica de máscara está produzindo. Onde está o problema? Tem
que identificar. São problemas de abastecimento. Isso tudo tem que ser
assegurado e tem que haver uma comunicação centralizada. É preciso mostrar
que, de um lado, a doença está sendo prevenida, com isolamentos, e que o abastecimento
estará garantido. E que existem recursos para as pessoas e empresas
sobreviverem. Essa visão tem que ser clara, coordenada.
Valor: O presidente
Jair Bolsonaro bateu cabeça com governadores, apostou no confronto. É ele quem
deve liderar o país no enfrentamento do coronavírus?
Meirelles: Compete ao
presidente da República fazer essa coordenação, é a função básica, definida
pela Constituição. Estamos falando da área econômica, da área de saúde e
da área de abastecimento. E do governo federal em seu conjunto, com os Estados.
Isso não vai se conseguir com confronto. Essa é a pior coisa que poderia
acontecer neste momento. Existe uma coisa muito superior a divergências de
opiniões, interesses pessoais e conflitos políticos, que se chama saúde
pública. Preservar a vida da população brasileira e, em seguida, preservar a
economia. Isso deve se prevalecer no momento, em qualquer momento, e
particularmente num momento de crise. É crucial.
Valor: O presidente
está exercendo esse papel?
Meirelles: Digamos que
ainda não exerceu. Mudou de atitude, já diminuiu o confronto. Acho que ele
tem que assumir sim um papel de coordenação e ponderação, trazendo todos para
trabalhar na mesma direção e em conjunto. Essa coordenação é fundamental.
Estamos todos no mesmo barco.
Valor: O momento é
totalmente atípico. Em 2016 o sr. foi o grande articulador da PEC do teto
de gastos. Esses paradigmas estão caindo por terra? A austeridade fiscal está
sendo testada?
Meirelles: O teto de
gastos é fundamental e salvou o Brasil do colapso econômico em 2016. A
continuação do teto foi fundamental e voltará a ser no futuro. Agora estamos
vivendo uma crise de saúde, abastecimento e colapsos da economia como
consequências. O próprio teto já prevê exceções, como no caso de calamidade,
que estão sendo acionadas. Portanto, este não é um problema no momento. Agora a
economia precisa de liquidez, o Banco Central tem que tomar as providências,
como está fazendo. A melhor maneira de preservar o mundo, neste momento, é
preservar a vida da humanidade, das pessoas, de cada um. Inclusive para que, na
saída da crise, as pessoas possam trabalhar, produzir, se sustentar, sustentar
as famílias e a economia voltar a funcionar. A arrecadação está caindo,
inevitável, e tem que se procurar mitigar isso. De novo: qual a causa do
problema? Em 2016 era o colapso fiscal do governo federal. Isso voltará a
ser problema importante no futuro. Hoje, é preservar a vida das pessoas. A
crise é de saúde, com consequência grave na economia. Temos que manter a
economia preservada, com funcionamento básico e para isso são necessários
recursos públicos. E temos que preparar a saída da crise.
Valor: Como?
Meirelles: Há um custo
enorme e dramático, dependendo da abordagem de cada país. Não podemos sair de
uma crise de saúde, gravíssima e voltar para uma crise fiscal em seguida. Os
gastos públicos agora são absolutamente necessários. A crise é de preservação
da vida.
No segundo momento,
temos que retomar a produção e para isso será necessária a autoridade fiscal
para não fazer com que o país seja conduzido de volta a recessão, novamente por
razões fiscais.
Valor: Houve polêmica
sobre a medida provisória do governo federal com a possibilidade de suspensão
de contratos de trabalho por quatro meses, sem contrapartida da União.
Qual gasto público deveria atuar aqui?
Meirelles: Tem que
separar: medidas específicas para problemas específicos. Não podemos colocar
tudo na mesma nuvem e dando tiros às cegas. Temos as pessoas que trabalham de
maneira informal. Como atender? Claramente tem que ser a rede de proteção
social, já temos uma estrutura básica no Brasil, com o Bolsa Família e outros
programas sociais. Isso tem que ser estendido de maneira prática para situações
de emergência para todo o mercado informal do país. Ou para as pessoas que vão
perder totalmente a sua fonte de receita, os pequenos
e microempreendedores, etc. Esse é um foco. Outra frente são os empregos
formais, e aí veio a controversa da MP: as pessoas que vão perder os empregos,
porque a renda das empresas cai, o movimento cai e ela precisa de menos
trabalhadores. Aí cada país endereça isso à sua maneira. Temos que conjugar a
preservação do emprego, do ponto de vista do trabalhador, assegurando a
ele que continue tendo emprego formal como fonte de rendimento. E temos que
preservar, ao mesmo tempo, a empresa, para que não entre em insolvência por
causa da crise. São duas pontas. Temos que preservar a estrutura produtiva do
país para, na saída da crise, ela não estar destruída, como na Segunda Guerra.
Muitos dizem: precisamos de Plano Marshall para o Brasil. Perfeito. Mas se
esquecem que era os EUA, com uma economia preservada e robustecida pela guerra,
tiveram recursos suficientes para o plano. No caso do Brasil não teremos isso,
porque o mundo inteiro está enfrentando a mesma crise. Hoje tem uma questão de
governo que intervém, aumentando os gastos públicos. Num segundo momento
precisaremos ter a economia funcionando em pleno vapor. Nesta ordem: primeiro a
vida da população, em segundo a renda das pessoas, e terceiro a sobrevivência
das empresas e preparação da economia para o pós-crise.
Valor: Qual a linha de
crédito que estará disponível para os micro e pequenos empresários em SP, e que
montante equivalente o sr. acha necessário no governo federal?
Meirelles: Estamos
trabalhando intensamente nisso. Prevê-se que o Estado deve conseguir, além de
recursos do próprio Tesouro, recursos do
Estado deve conseguir,
além de recursos do próprio Tesouro, recursos do Banco Mundial, de agências de
fomento, do BNDES, e também agências francesa e alemã, linhas de crédito
estimadas acima de R$ 2,5i bilhões. No governo federal é diferente. O Tesouro
pode emitir títulos de dívida, o governo pode aumentar suas despesas, seja
pelos bancos oficiais também pelo BNDES.
Temos que ter a atuação mais forte e específica do BNDES e dos bancos oficiais
para o financiamento de pessoas, pequenas e médias empresas. No caso de
pessoas, é para a atividade econômica, porque para o seu sustento elas têm que
receber recursos de aporte direto da União, a fundo perdido. São questões muito
diferentes.
Valor: O sr. sugere um
valor, um seguro compatível para os vulneráveis neste momento?
Meirelles: Para os
vulneráveis tem que ser um recurso na estrutura do Bolsa Família, algo mensal.
Idealmente, que possa ser um valor superior ao BF para o
desassistidos. O problema é se coloca tudo na mesma coisa. Se
coloca isso para os que estão fora do mercado do trabalho, para os que estão
dentro do mercado de trabalho e perdem o emprego, que é outra coisa. Temos que
garantir a manutenção de empregos de todos os que estão empregados e temos que
garantir que todos do mercado informal tenham garantias mínimas. Para os
empregados, a manutenção do salário. Para os que tem pequena ou média
empresa, programas específicos de financiamento. E os que devem ter auxílio
mensal, rede de proteção social. Uma coisa é redução temporária com redução de salário.
Outra coisa é saída temporária sem salário. Aí de fato o governo precisa
assegurar.