O Globo, n. 32537, 06/09/2022. Opinião, p. 2

Ciência parada no tempo

Helena Nader


Neste ducentésimo 7 de Setembro, era para estarmos comemorando avanços concretos em direção a um real projeto de soberania, condizente com uma nação independente do século XXI. Em vez disso, o atual governo celebra a data preso ao passado, festejando a presença mórbida do coração de Dom Pedro I em território nacional.
No mundo globalizado, um país de fato soberano precisa ter mais que apenas autossuficiência em recursos naturais. Nação verdadeiramente independente é aquela que desenvolve sua própria ciência e dispõe de sua própria tecnologia. Não é, no entanto, o que pensam os atuais detentores do poder. O Ministério da Economia já deixou claro, em outras ocasiões, que investir em inovação não é tanto uma prioridade. Basta comprá-la dos outros, e está resolvido o problema. Na velocidade de obsolescência das máquinas, porém, o investimento rapidamente vai pelo ralo se não é acompanhado de uma política sustentável de pesquisa e desenvolvimento.

Parados no tempo, como o coração do imperador conservado em formol, nos desconectamos das pautas prementes da sociedade do conhecimento. Costumávamos ser referência em áreas como doenças tropicais, agricultura e até genômica. Para que voltemos a evoluir cientificamente, precisamos criar mais laboratórios nacionais, nos moldes do que é feito nos Estados Unidos e em países da Europa. Só assim poderemos continuar a avançar em campos do conhecimento hoje primordiais para os novos sentidos de soberania do nosso tempo: energia sustentável, bioeconomia, inteligência artificial, internet das coisas, entre tantos outros.

É urgente valorizar a carreira docente e de pesquisa. Junto à fuga de cérebros para o exterior, preocupa-nos a diminuição da demanda interna por cursos de pós-graduação. Consequência direta dos seguidos cortes no financiamento da ciência nacional, as bolsas de mestrado e doutorado ficaram ainda menos atraentes para os jovens. Só nas universidades estaduais paulistas, a quantidade de novos doutores e mestres despencou 25% desde 2020! A crise no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) é mais antiga. Seu time de cientistas vem minguando há anos. Hoje restam apenas cerca de 150 pesquisadores, dos quais 50% já poderiam se aposentar, numa instituição que já foi referência mundial em biologia tropical e chegou a reunir mais de 600 especialistas.

Em vez de gastar recursos públicos no custoso traslado de uma relíquia, seria de maior valor para a conquista de nossa real soberania investir na retomada da ciência brasileira. Somos, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, a nona economia do mundo. No entanto, diferentemente de vários dos países que nos precedem (e mesmo de muitos que nos sucedem) nessa lista, educação, ciência, tecnologia e inovação continuam sendo vistos no Brasil como meros gastos, e não investimentos.

Falta-nos uma política de Estado para o setor. Falta-nos visão estratégica de longo prazo e responsabilidade social. E abundam obstáculos, interpostos pelo próprio governo. O mais recente deles é a edição da MP 1.136, na semana passada. A medida provisória volta a atacar, por um novo caminho, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Esperamos que nossos representantes no Congresso devolvam ao Executivo essa MP, que vai na contramão do desenvolvimento, pois visa a obstruir uma das principais artérias que irrigam a combalida, mas ainda pulsante, ciência brasileira.