O Globo, n. 32537, 06/09/2022. Política, p. 8

As dores nas filas e no bolso

Giulia Vidale


Após dois anos e meio de pandemia e no momento em que o avanço da vacinação provoca alívio na população, questões recorrentes da saúde pública no Brasil são apontadas pelos usuários como os principais problemas do setor. A demora para conseguir consultas, exames e cirurgias, a superlotação de hospitais e emergências e a falta de leitos compõem o topo da lista, segundo pesquisa Ipec, realizada a pedido do GLOBO. No caso dos planos privados, a baixa cobertura de procedimentos é citada como o maior nó.

Outro levantamento, também feito com exclusividade pelo instituto, revela que a saúde é o terceiro tema na lista de preocupações dos brasileiros, com 33%, atrás do desemprego e da corrupção. No Nordeste, região com déficit histórico na rede hospitalar, a apreensão é maior: 41%.

Não há no mundo outro sistema público de atendimento gratuito e universal do porte do Sistema Único de Saúde (SUS). Nem mesmo o NHS, serviço de saúde do Reino Unido, no qual  omodelo brasileiro foi inspirado. Cerca de 70% da população brasileira, o que corresponde a 150 milhões de pessoas, depende exclusivamente do SUS. No entanto, mais de três décadas após a sua criação, a rede pública, essencial no enfrentamento à pandemia, ainda enfrenta barreiras para avançar na direção do atendimento integral de qualidade. Falta de medicamentos, infraestrutura defasada e ausência de equipamentos para exames e cirurgias são outros pontos elencados.

— O tempo de espera é uma reclamação antiga, já estava presente em eleições anteriores. Os candidatos sempre dizem que vão acabar com a fila, mas nada é resolvido, porque não há uma política para a rede inteira — diz a médica Ligia Bahia, professora da UFRJ.

‘Má gestão’

À primeira vista, o Brasil investe uma soma considerável em saúde, destino do equivalente a 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Um olhar mais atento mostra um outro quadro. A injeção de recursos públicos corresponde a apenas 3,8% do PIB (o restante é de gastos privados). Nos países da Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o índice é de 6,5%.

— Nós estamos próximos de países da África subsaariana, que têm redes de proteção social muito incipientes e onde o gasto privado é maior —avalia o economista Arthur Aguilar, diretor de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).

Para completar, o governo brasileiro ainda investe de forma ineficiente. Segundo estimativa do Banco Mundial, 30% da verba da União para o SUS são mal usados.

— Há indícios de que a má gestão é responsável por desperdícios da saúde que estão muito acima da corrupção, que também é um problema que foi escancarado na pandemia — diz o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Cesar Fernandes.

No geral, 44% dos usuários da rede pública apontam o tempo de espera como um dos três principais problemas — com relação à superlotação, o índice é de 38%. Os recortes internos das pesquisas mostram nuances relacionadas com as necessidades da população ou a distribuição desigual da assistência pelo país: aqueles com mais de 60 anos se queixam mais da demora (57%), enquanto no Nordeste a reclamação sobre o excesso de pacientes (44%) é superior à média nacional.

Em paralelo, o levantamento mostra que sentimentos positivos já são maioria na percepção sobre o andamento da pandemia, resultado impactado pela vacinação: esperança, otimismo, alívio, gratidão e felicidade representam 66% das menções; preocupação, insegurança, apreensão, medo e angústia somam 29%.

Sistema privado

No universo pesquisado pelo Ipec, 32% disseram ter plano de saúde. A maior parte dessas pessoas possui renda familiar acima de cinco salários mínimos, tem de 25 a 59 anos de idade e ensino superior completo. Esses dados indicam que a maioria dos usuários tem acesso aos planos privados nos locais de trabalho.

Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que o Brasil conta com 49,8 milhões de beneficiários de planos de saúde. No entanto, assim como o atendimento na rede pública, o atendimento suplementar está longe de ser ideal. Os problemas não são exatamente novos, mas certamente se agravaram nos últimos anos, como aumento dos custos do setor, a pandemia e a crescente judicialização que busca reverter negativas de cobertura e reajustes abusivos. O descredenciamento de hospitais e clínicas também é motivo de descontentamento dos clientes.

— No ano passado, muitas pessoas decidiram abrir processo porque faziam tratamentos, como hemodiálise, em uma clínica que foi descredenciada pelo plano — conta a advogada Marcela Carvalho, especialista na área de saúde.

A crise fez com que muitos planos fossem encerrados ou passassem a oferecer uma cobertura menos robusta aos segurados, a fim de reduzir custos e, consequentemente, o valor dos planos. A discussão voltou recentemente a ganhar a atenção do Congresso: no mês passado, o Senado aprovou um projeto obrigando as operadoras de planos de saúde a cobrir tratamentos, exames e procedimentos que não constam da lista oficial da ANS.

No intuito de apresentar soluções para os principais problemas do setor, O GLOBO convidou o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), o Instituto de Estudos em Saúde Preventiva da UFRJ e o Centro de Gestão de Políticas Públicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) para elaborar uma lista de medidas que devem ser adotadas pelo próximo governo. Aumentar a oferta de serviços de prevenção, elevar o financiamento e melhorar a articulação na rede (entre governo federal, estados e municípios) são vistos como ações fundamentais.