Título: No Rio, a Cidade Partida mostra sua face
Autor: Juliana Rocha e Paulo Celso Pereira
Fonte: Jornal do Brasil, 30/10/2005, País, p. A8

O famoso abismo social que deu ao Rio a alcunha de Cidade Partida, consagrada pelo livro do jornalista Zuenir Ventura, mostrou na votação do referendo sobre o desarmamento, mais uma vez, a distância entre o pensamento de ricos e pobres. Enquanto as classes mais abastadas foram às urnas para votar em massa no Não, nas regiões pobres o Sim perdeu por pequena diferença.

No Complexo da Maré, que reúne 14 favelas formando uma das zonas mais pobres e perigosas do Rio, o Não venceu por apenas 56%. Do outro lado da cidade, em Ipanema e na Lagoa, o Não atingiu 69%. A discrepância entre as votações tem várias causas, antes de tudo o fato de as regiões mais pobres, geralmente controladas pelo tráfico de drogas, conviverem diariamente com o crime.

- As pessoas que vivem na Maré conhecem o drama das armas na própria pele, no dia-a-dia. Sabem perfeitamente que armar-se não é uma solução para se defender. Eles têm uma clareza muito grande quanto à enorme falácia que é esse argumento de que ter armas permite a proteção da família. Já na Zona Sul esse discurso acaba se impondo, até porque comprar arma hoje no Brasil tornou-se privilégio de pessoas com dinheiro. Essa história de que os traficantes teriam mandado votar no Sim foi uma manipulação grosseira, um descalabro - argumenta o sociólogo e ex-secretário de Segurança Pública do Rio, Luiz Eduardo Soares.

A diferença entre a votação do Sim e do Não se repetiu em várias metrópoles país afora. Consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, o ex-deputado Marcos Rolim acredita que a sensação de segurança foi outro fator fundamental para a votação. Autor do livro Desarmamento: evidência científica. Ou tudo aquilo que o lobby das armas não gostaria que você soubesse, Rolim afirma que apesar de sofrerem mais com a violência no cotidiano, as famílias pobres - por padecer de muitas carências - acabam tendo menor ''sensação de insegurança''.

- A sensação de insegurança está mais consolidada nas classes médias e altas, nas quais a violência é a questão que mais perturba, enquanto na vida dos mais pobres este é um problema entre outros. Além disso, apesar de ter menor sensação de insegurança, grande parte das vítimas de armas de fogo vivem nessas periferias. É uma contradição porque o medo está na classe alta, mas a experiência de vitimização está nesses locais. E isso pode ter levado essas pessoas a votar mais no Sim - explica.

Secretário Adjunto de Defesa Social de Minas Gerais (equivalente à Segurança Pública, no Rio), Luís Flávio Sapori afirma ainda que a imagem das armas de fogo nas regiões mais pobres das grandes cidades podem ter influenciado na escolha.

- Nos locais onde o homicídio e o tráfico são mais intensos a população tende a perceber o agravante da arma de fogo. Para elas, a arma tem uma imagem opressora, nefasta, pois sentem no cotidiano o quanto ela é maléfica. Ao contrário da classe média que vê a arma como uma autodefesa - ressalta. (P.C.P)