Título: Bolívia dívida social e união nacional
Autor: Karina Manasseh
Fonte: Jornal do Brasil, 30/10/2005, Internacional, p. A9
LA PAZ - As eleições presidenciais da Bolívia, marcadas para 4 de dezembro, foram adiadas pelo Congresso e pela Corte Eleitoral(*). Porém, o clima em La Paz é de campanha. Evo Morales, líder cocalero e do poderoso movimento social indígena, está na frente nas pesquisas. Jorge Tuto Quiroga, herdeiro político de Hugo Banzer e candidato da elite, vem em segundo lugar, seguido de Samuel Doria Medina. Ganhe quem ganhar, uma coisa é certa: a Bolívia passa por um processo de transformação profunda, onde poderosos movimentos locais se opõem a forças globais para mudar definitivamente o cenário do país.
Com a renúncia de Carlos Mesa, em junho, o presidente interino Eduardo Rodríguez tomou posse sob a promessa de convocar eleições gerais o quanto antes. Após três anos de instabilidade política causada por violentos protestos sociais que derrubaram dois presidentes em 20 meses, os bolivianos vão às urnas decidir os rumos do país. Na esfera local, a decisão será tomada com base em dois problemas: a nacionalização do gás e de outros recursos naturais, e a discriminação racial. Na esfera internacional, o plebiscito tem mais ramificações: representa o fim do modelo econômico vigente, o não à globalização, e o sim à identidade nacional e à herança cultural. Significa também a vitória das correntes nacionalistas de esquerda, que, influenciadas pelo modelo antiimperialista de Hugo Chávez na Venezuela, se alastram pelos Andes.
Com Produto Interno Bruto per capita de US$ 960, a Bolívia ainda é um dos países mais pobres da América Latina. Dividido por linhas raciais, geográficas e econômicas, tem quase 60% da população formados por indígenas pobres, vivendo nas áreas rurais. Geograficamente, o país está dividido entre o altiplano menos favorecido, que inclui a província de La Paz e a cidade-satélite de El Alto; e as terras baixas, como Santa Cruz, centro econômico efervescente que concentra dois dos maiores recursos de exportação: o gás natural e a soja.
O socialista Morales tem a sua base no altiplano e representa a população indígena que se vê tradicionalmente excluída da economia e das oportunidades de emprego. Sua proposta coloca a questão racial no centro do desenvolvimento. Através do MAS (Movimiento al Socialismo), quer nacionalizar a indústria do gás e a legalização da produção de coca. Se eleito, propõe que as multinacionais poderiam continuar atuando na extração, mas teriam de deixar a venda do gás para o governo.
Tuto representa a elite empresarial e agrícola de Santa Cruz. Propõe uma mudança no modelo para gerar mais empregos, via transferência de fundos para as comunidades. A estatização do gás, onde 50% da receita seriam revertidos aos cofres públicos para programas sociais, também está na plataforma. Herdeiro do neoliberalismo que promoveu a privatização nos anos 90, sabe que sua sobrevivência política na Bolívia de hoje depende de uma retórica nacionalista para atingir as massas excluídas.
Medina propõe a criação de 5 mil empresas populares nos próximos cinco anos, que beneficiariam 2 milhões de bolivianos, e a nacionalização das companhias privatizadas, através da compra progressiva de ações. Assim como Tuto, busca o apoio do centro através de um discurso moderado e nacionalista.
De acordo com a últimas pesquisas, Morales lidera com 33%, seguido por Tuto Quiroga, com 27% das intenções de voto. Doria Medina vem atrás com 14%. Como é pouco provável que qualquer dos três candidatos receba maioria absoluta nas urnas, a próxima administração terá de negociar alianças. Segundo a lei eleitoral, cabe ao Congresso eleger o presidente entre os dois primeiros colocados, um artifício que força a articulação de alianças políticas e a formação de consenso. Portanto, o partido que terminar em terceiro será imprescindível para assegurar a governabilidade da próxima administração.
Dos cenários possíveis, o mais provável é o de uma aliança entre Morales e Medina, o que garantiria ao governo não só um equilíbrio no Congresso, mas também o apaziguamento dos movimentos sociais. Um acordo entre Tuto Quiroga e Medina formaria um governo de centro-direita com maioria no Congresso, mas pouca chance de sucesso, já que os interesses da população indígena e rural permaneceriam de fora, e os protestos sociais continuariam.
O pulso em La Paz está dividido. Por um lado, os que apóiam o cocalero percebem o tamanho da dívida que o país tem com suas populações indígenas e rurais, e afirmam que a Bolívia só sairá do atual impasse político quando as demandas destas populações forem atendidas. A elite, por sua vez, reinventa um modelo antigo combinando elementos estatizantes e populistas com políticas de mercado, na aposta de que, para a união nacional, basta crescimento econômico e oportunidades para todos. Independentemente de quem seja eleito, o fato é que, após a emergência dos movimentos sociais indígenas, o tecido social da Bolívia e a sua representação política nunca mais serão os mesmos.
(*) A data das eleições tornou-se uma disputa entre o Congresso e a Corte Eleitoral. De acordo com as leis locais, a alocação dos assentos distritais no Congresso deve ser atualizada com base nos dados mais recentes. No censo de 2001, quatro assentos da província de La Paz foram outorgados a Santa Cruz. As bancadas das duas províncias ainda brigam pelas cadeiras. Como o Congresso elege o presidente na falta de uma maioria eleitoral, esta questão é importante. A Corte Eleitoral determinou o adiamento no início da madrugada de sábado. A decisão causa maior desgaste ao governo e pode levar à renúncia do presidente Eduardo Rodríguez, cujo mandato expira em janeiro.
Jornalista com pós-graduação em Relações Internacionais e Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Georgetown em Washington DC.