Título: Usando Brasil e Argentina para conter Chávez
Autor: Sheila Machado e Rozane Monteiro
Fonte: Jornal do Brasil, 30/10/2005, Internacional, p. A10

Se, por um lado, os Estados Unidos vão lamentar a continuidade da falta de comprometimento com a implementação da Alca; por outro, vão usar a liderança dos presidentes Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva no continente para tentar conter o que a Casa Branca classifica como um ''problema'': o líder da Venezuela, Hugo Chávez.

- A eventual entrada de Caracas no Mercosul deveria ser vista por George Bush como um processo de moderação. Com vínculos integrativos, o país terá de se adequar, pelo menos, às regras do bloco. E ficará sob supervisão de Buenos Aires e Brasília - afirma o cientista político argentino Juan Tokatlián.

O analista lembra que, nos últimos anos, Brasil e Argentina vêm acumulando ''sucessos'' em intervenções diplomáticas para apaziguar conflitos na América Latina. O caso que mais chama sua atenção é o do Haiti, onde há uma força de estabilização da ONU comandada por militares brasileiros e grande parte do contingente é de argentinos. Em 2003, Lula liderou a criação do Grupo de Amigos, que, em 2003, conseguiu garantir o referendo popular que confirmou Chávez no poder em Caracas. Junto com Kirchner, também ajudou na dupla sucessão presidencial pós-convulsões sociais na Bolívia e na crise constitucional no Equador.

- A Casa Branca deve tomar estes antecedentes como um sinal de que Argentina e Brasil estão suficientemente maduros para evitar instabilidade na região e que, por via da integração, vão fortalecer a democracia e evitar a polarização - sugeriu Tokatlián.

Segundo o cientista político brasileiro Marcelo Coutinho, os EUA já esperam de Buenos Aires e Argentina a ''postura madura'' na América do Sul:

- A cúpula vai medir a relação que estes dois países têm com o resto do continente. No caso do Brasil, principalmente, o papel de moderador deve ser aprovado. Temos boas relações tanto com os americanos quanto com os venezuelanos, o que nos coloca em posição privilegiada em um momento em que a rivalidade entre Bush e Chávez aumenta.

Coutinho lembra ainda que os EUA não têm como impedir a entrada da Venezuela no Mercosul ou criar obstáculos para o eixo Caracas-Buenos Aires-Brasília. E, em última instância, um movimento brusco iria contra seus interesses, acrescenta Argemiro Procópio, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

- A polêmica vai existir, mas acho que neste conflito Casa Branca x Miraflores tem mais fumaça do que fogo. Os EUA são os principais parceiros econômicos da Venezuela, o primeiro comprador de petróleo do país. Logo, os americanos dependem do óleo venezuelano. Se há dependência mútua, o jeito vai ser tentar aparar as arestas da guerra verbal existente entre Bush e Chávez. Todos estão curiosos para saber como os dois líderes vão se comportar no banquete. E eu acho que vão proceder muito bem - acredita.

Outro parceiro comercial americano, o Brasil pode sofrer um pouco de pressão, por ter feito a escolha estratégica de abrir relações com todas as regiões do mundo, em detrimento da adoção da Alca. No entanto, o único ponto concreto em que a Casa Branca pode se apoiar para tentar alguma manobra comercial em cima de Brasília são os focos de febre aftosa no Mato Grosso do Sul - estado fronteiriço a Bolívia e Paraguai.

- Não creio, entretanto, que vão usar a doença como elemento de confronto. É um fator importante, mas não fundamental - afirma o argentino Carlos Pereyra Mele, do Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos.

- A questão não seria exatamente fechar mercado, mas forçar uma redução de preço da carne bovina brasileira - alerta Procópio. (S.M.)