Título: Reconciliação fortaleceu oligarquia
Autor: Daho Djerbal
Fonte: Jornal do Brasil, 30/10/2005, Internacional, p. A15
Além do Fato / Argélia
No dia 29 de setembro, os argelinos endossaram, por maioria significativa, o chamado Plebiscito para a Paz e a Reconciliação Nacional, a lei de anistia proposta pelo presidente Abdelaziz Bouteflika com o intuito de deixar fora do alcance de um processo legal qualquer integrante de grupos armados por crimes cometidos no conflito iniciado em 1992. A consulta foi aprovada por 97,36% dos eleitores, com 79,76% de comparecimento às urnas, um resultado sem precedentes desde o referendo pela independência do país (então colônia da França), em 1962. Esses números impressionantes podem ser explicados pela barragem da cobertura positiva do plebiscito na mídia pró-governo nos meses que precederam o pleito, tanto quanto a forma como o voto foi conduzido. Quatrocentos mil fiscais civis ligados ao Ministério do Interior acompanharam o funcionamento das 424 seções eleitorais sem qualquer contrapartida por parte de partidos independentes ou de organizações internacionais, que deveriam ter se mobilizado contra procedimentos considerados antidemocráticos.
Mais do que o debate em torno da credibilidade de um resultado tão expressivo matematicamente, o foco da discussão deve passar agora às implicações que o próprio plebiscito determinou. Que papel político as conclusões das urnas representarão? Como poderá trazer qualquer reflexo à balança de poder na cena política argelina e no relacionamento entre as diferentes forças?
A consulta levanta muitas questões problemáticas. A primeira e mais séria é a de que os votos permitiram ao governo essencialmente empurrar os dolorosos restos de mais de uma década de confrontos violentos para baixo do tapete, em vez de lidar com eles. As principais vítimas nesses embates foram os civis, que se tornaram alvo tanto de ataques dirigidos ou a esmo, de massacres, da tortura e do desaparecimento. Ambos os grupos extremistas armados de oposição e os agentes do Estado são, em vários graus, diretamente conectados com tais atos.
A consulta, ao ser aprovada, cancelou automaticamente todos os processos abertos na Justiça contra os militantes que se renderam voluntariamente desde janeiro de 2000. Também refuta qualquer responsabilidade do aparelho do Estado no desaparecimento de indivíduos. E, por fim, declara categoricamente que nenhum ato incorreto cometido por agentes do governo será jamais punido.
O argumento do governo de Bouteflika, de que o plebiscito iria ajudar a curar as feridas da guerra e reconciliar a nação, não pode ser considerado lógico. O grupo argelino de luta pelos direitos da mulher Reseau Wassila destacou em um de seus relatórios a respeito dos estupros e da violência cometidos pelos bandos islâmicos armados: ¿certos casos não podem ser ignorados porque isso significaria violar o direito de Humanidade dessas vítimas pela segunda vez. Também implicaria em comprometer a reintegração dessas pessoas na sociedade. É uma população que foi torturada, mutilada e estuprada e ainda não têm sequer o direito de ser reconhecida como tal. Nenhum só criminoso reconheceu até hoje seus atos ou expressou vergonha e arrependimento¿.
De um ponto de vista legal, o código penal que entra em vigor após o resultado das urnas na Argélia determina que esses crimes sejam examinados e avaliados, que tenham os perpetradores identificados e tragam os artigos relevantes da lei em questão claramente determinados. Com tais requisitos cumpridos, um julgamento pode então ser iniciado, no qual ambos, perpetradores e vítimas, podem ter o direito de defesa e então uma sentença simbólica é emitida pelo tribunal. Só depois de tais processos pode, então, o governo declarar a anistia e pedir às vítimas que aceitem o perdão oferecido.
Outra implicação bastante séria é a de que ela fortalece muito o já formidável poder de Bouteflika. Desde o ano 2000, o país tem experimentado um período de calma e o regime, com isso, consegue se mostrar capaz de assegurar sua posição hegemônica com o apoio do Ocidente.
A eleição presidencial de 2004 reforçou ainda mais a posição do presidente, em função de ter sido eleito com mais de 85% dos votos, competindo com adversários que ¿ diferentemente dos pleitos anteriores ¿ não resolveram desistir da disputa antes do fim da campanha. As eleições o ajudaram ainda a consolidar sua posição vis-a-vis com as Forças Armadas. Mais ainda, uma rápida avaliação sobre a atuação da imprensa argelina desde o pleito presidencial revela que uma caça às bruxas foi iniciada dentro do Judiciário. Sob o pretexto de reformar a instituição, juízes que não eram entusiastas sobre as iniciativas vindas do palácio presidencial desde então têm sido forçados a se aposentar ou são sumariamente afastados. Além disso, o Conselho de Estado, uma espécie de Suprema Corte, e a Corte Constitucional, vêm sendo esvaziados. Estão sendo barrados justamente aqueles que defendem a independência do Judiciário diante do poder Executivo. Pela mesma moeda, qualquer um na sociedade civil ou na arena política que dê voz à oposição tem sido silenciado. Bouteflika claramente planejou o referendo como um plebiscito para dar a si mesmo uma carta branca para governar sem qualquer impedimento moral ou contrapeso político.
Entre as muitas ramificações dessa situação estão a crescente corrupção. O jornal argelino Al Watan publicou recentemente notícias a respeito de apropriação indébita e disputa de influência entre membros do primeiro escalão do regime com a cumplicidade de servidores do Estado. Nas sangrentas décadas de 1980, os argelinos se sentiam ameaçados pela fúria dos homens armados. Nos primeiros anos do século 21, a nova oligarquia parece ter se estabelecido sob o disfarce das barulhentas cerimônias que glorificam a ¿paz civil e a reconciliação nacional¿.