Título: Churrasco dos aflitos
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 01/11/2005, Outras Opiniões, p. A11

O escândalo está instalado e o presidente recorre ao velho chavão: ''Todos são inocentes, enquanto não forem condenados pela Justiça''. Não. Não estamos falando de Luiz Inácio Lula da Silva, cercado por incessantes denúncias, e sim do convidado que ele trará ao Brasil, tão logo se encerre a Cúpula das Américas, em Mar del Plata - o presidente George W. Bush. Que, como já é do conhecimento público, está atolado num pântano político em função de episódio considerado dos mais graves, na legislação dos Estados Unidos.

Em represália ao embaixador que denunciou a improcedência da denúncia de compra de armas de alto poder destrutivo pelo governo Saddam, Lewis Libby Jr, chefe de gabinete do vice Dick Cheney, vazou para uma jornalista a informação que a esposa dele era agente secreta da CIA. Ato de traição abominável, punido com 30 anos de cadeia, mais multa pesada.

Que Cheney estaria na origem da insólita covardia, dúvidas não restam. O que se especula é se Bush está envolvido no enredo, o que lhe valeria um processo de impeachment.

Nesse contexto, o que Lula tem a conversar com o cowboy texano em churrasco na Granja do Torto? Por acaso a ABIN não acompanhou a melódia? Não vinha lendo, pelo menos, as manchetes do noticiário norte-americano que já anunciavam a Casa Branca na linha de tiro?

Mas, mesmo sem tal cenário, o que justifica essa esdrúxula manifestação de afeto? Não se completou uma quinzena, sequer, do referendo em que o governo Lula defendeu oficialmente a proibição do comércio de armas. Por que, então, o convite ao maior provocador de guerras e mortes, no mundo de hoje, depois de passar dias com ele na Argentina?

Bush não carrega o galardão negativo apenas pelo massacre de populações civis. Há também a defesa que sua administração faz da ação predadora da indústria petrolífera, sua principal financiadora de campanhas, ao se recusar a assinar o protocolo de Kyoto. Para além da campanha de internacionalização da Amazônia, que apóia.

Há algum assunto, de nosso interesse particular, pendente, neste momento? Certamente, nada, a não ser essa bobagem, totalmente desnecessária para a melhoria das condições de vida do povo brasileiro, de sonhar com posto permanente no Conselho de Segurança da ONU. O mais é pressão para que o governo Lula, já tão submisso aos ditames norte-americanos na ordem econômica, também tenha comportamento cordato em algumas outras questões continentais, prioritárias para os reacionários do Império - Plano Colômbia, base militar no Paraguai e relações com a Venezuela, cujo governo a administração Bush insiste em desestabilizar.

Começando pelo vizinho do norte, o quadro preocupa, principalmente depois que Chávez bateu boca, publicamente, com Lula, por ter o presidente brasileiro concordado em omitir proposta de um plano de educação pública para o continente, no documento final do último encontro de chefes de Estado do continente, em Brasília.

Sobre a Colômbia, vale chamar a atenção para matéria publicada em detalhes no JB de sexta-feira: ''Esquadrão das AUC aterroriza favela''. Para quem não lembra da sigla, AUC significa Autodefesas Unidas da Colômbia, força paramilitar de direita que, com o apoio da Polícia, e a anuência do governo Uribe, oprime favela de Bogotá, povoada basicamente por jovens menores de idade, encurralados entre duas opções - ou aceitam ser recrutados para suas tropas, ou são ''desaparecidos''.

Uribe, fato notório, recebe apoio simultâneo de Brasília e Washington. Se surgir o tema sempre recorrente do Plano Colômbia, voltado contra as Farc, teremos Lula se contrapondo, com a necessidade de pôr fim à rotina delinqüente das AUC? E quanto à base militar no Paraguai? Lula encontrará clima, em meio a aguardentes e carnes que Bush possivelmente dispensará, para cobrar sua extinção? A valer a submissão ao FMI, difícil vislumbrar sua vontade de confrontar decisões militares do Pentágono.

De qualquer forma, sexta-feira, os brasileiros têm a oportunidade de reproduzir o que cidadãos de toda a América Latina estarão manifestando na Cúpula Paralela, em Mar del Plata, Diego Maradona à frente, contra a presença de Bush no continente. Poderão expressar seu desacordo com a visita em atos públicos que vão colocar mais um tijolinho na decadência política incessante de George W. Bush, e de seu parceiro de churrasco.