Título: Além do Fato: A salvação da Varig
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 02/11/2005, Economia & Negócios, p. A20
Salvar a Varig é um dever do estado e de seus poderes constituídos. O Legislativo, ao longo dos três últimos anos, em especial o ¿Grupo Parlamentar Misto em Defesa da Varig¿ do Congresso Nacional, e o Judiciário, após o ajuizamento da ação de recuperação judicial da companhia, particularmente o do Estado do Rio de Janeiro, têm dado demonstrações cabais do propósito de salvar a Varig. No Executivo, entretanto, lavra acirrada e pública controvérsia, pois, se, de um lado, o vice-presidente da República e ministro da Defesa, Dr. José Alencar, declarou que se estuda a possibilidade de os ¿credores ¿ a maioria empresas públicas ¿ assumirem¿ o controle da companhia, temporariamente; de outro, o secretário Executivo do Ministério da Fazenda, Murilo Portugal, ¿bombardeou a idéia de pôr recursos públicos na aérea, argumentando que não há brecha legal para isso¿; o ministro Antonio Palocci é ¿um obstáculo à recuperação da empresa¿ e o Dr. Guido Mantega afirmou que ¿não há possibilidade de ocorrer um `encontro de contas¿ entre a Varig e o governo federal porque isso é `juridicamente impossível¿¿ (Gazeta Mercantil, edição de 28 p.p.).
Como a operação de financiamento de compra e venda da VarigLog e da VEM, anunciada pelo BNDES, não constitui uma autêntica e eficiente medida de reorganização da Varig, porquanto apenas lhe propiciará uma ¿sobrevida¿, é mister pensar, séria e rapidamente, na conjugação dos esforços dos ¿credores públicos e privados¿, consoante proposto pelo ilustre vice-presidente da República, quiçá nas linhas deduzidas a seguir.
Os ¿credores públicos¿ podem e devem ¿assumir o controle da companhia¿, com o imprescindível apoio e participação dos trabalhadores, dos credores privados e de investidores nacionais e estrangeiros, com fundamento na novel Lei de Recuperação, em abalizada doutrina e em legislações européias, particularmente da Itália e da França, eis que a Varig é uma empresa privada de interesse público.
Podem e devem porque, na Terceira Fase da História do Direito Concursal, a em que ora nos encontramos, a reestruturação, saneamento, preservação e desenvolvimento de qualquer empresa dizem respeito aos seus sócios, empregados, fornecedores, financiadores, fisco, consumidores, investidores, comunidade, poder público!
Podem e devem porque o ¿Direito da Empresa em Crise¿, um ¿Direito de Terceira Geração¿, tem como legítimos titulares não as pessoas, físicas e jurídicas, isoladamente consideradas, mas os grupos humanos, a comunidade, a nação!
Por isso, a partir do fim da 2ª Grande Guerra, a doutrina passou a sustentar que as leis de recuperação e falência devem primar por normas de Direito Público e pôr de lado o caráter privatístico que sempre marcou o Direito Falimentar, eis que as soluções para as dificuldades das empresas, particularmente das macro-empresas, como é o caso da Varig, verdadeiro ¿patrimônio nacional¿, não são de natureza jurídica, mas política, social e econômica.
Os estudiosos do Direito Comercial pregam, ademais, que, devido ao interesse público e social que norteia a recuperação da grande empresa econômica e financeiramente viável, é indispensável a participação do estado no processo de reerguimento, através de (a) medidas de administração pública da economia; (b) concessão de créditos especiais pelo Estado, a médio e longo prazos; (c) garantia concedida pelo Estado aos bancos particulares, para concessão de financiamentos; (d) participação do Estado no capital social, mediante a subscrição de ações; (e) estatização, permanente ou temporária, dependendo da natureza das atividades empresariais etc.
Na Europa, em consonância com essa orientação doutrinária, Alemanha, Espanha e Bélgica criaram leis especiais, que disciplinam linhas de créditos para empresas em estado de insolvência; a França fundou o Instituto para o Desenvolvimento Industrial (IDF), os Comitês Interministeriais de Reestruturação Industrial (Ciri) e os Comitês de Departamentos para o Exame de Problemas de Financiamento (Codefi), e a Itália constituiu o Instituto de Reconstrução Industrial (IRI), a Italia Lavoro SpA, em substituição à Sociedade de Gestão e Participação Industrial (Gepi), o Comitê Interministerial de Programação Econômica (Cipe) e o Comitê Interministerial para a Política Industrial (Cipi), todos destinados à salvação das empresas viáveis.
Portanto, encontra respaldo, na melhor doutrina e ótimos precedentes nas legislações estrangeiras, a corrente que, no Executivo, defende a idéia de, temporariamente, o estado assumir o controle societário da Varig por intermédio de empresas públicas em conjunto com trabalhadores, credores privados, investidores nacionais e investidores estrangeiros, estes com participação limitada a 20% das ações com direito de voto, conforme dispõe o art. 181, II, do Código Brasileiro de Aeronáutica, cometendo a gestão dos negócios sociais a profissionais selecionados no mercado, para, depois de saneada a companhia, vender as ações em bolsa, medida que atende à multiplicidade dos direitos e interesses direta e indiretamente relacionados à crise da Varig.
É, aliás, o que está ocorrendo com absoluto sucesso na Itália no caso da Parmalat, que, no final de 2003, imergiu em uma profunda e complexa crise, levando o governo, na antevéspera do Natal, a editar o Decreto-Lei n. 347 ¿ ¿medida urgente para a reestruturação industrial da grande empresa em estado de insolvência¿ ¿, cabendo ao ministro da Atividade Produtiva conduzir o processo de reestruturação.
Em menos de dois anos, após uma eficiente atuação conjunta do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que acarretou a prisão do acionista controlador e dos principais executivos, o bloqueio de seus bens pessoais e diligências de busca e apreensão de documentos em escritórios de bancos e consultorias, as ações da Parmalat ¿ reorganizada e saneada com a colaboração dos credores, que converteram seus créditos em ações, ¿ estão retornando ao mercado de capitais de seu país.
É o que, certamente, acontecerá com a Varig ¿ uma empresa privada de interesse público ¿, se o estado se dispuser a cumprir o seu dever de salvá-la.
*Doutor e livre docente em Direito Comercial pela UERJ