Título: Os subúrbios
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 07/11/2005, País, p. A2

Na noite de sábado para domingo, 1.295 automóveis foram queimados nos arredores de Paris e de algumas cidades próximas. Foi a décima - e mais grave - jornada de protestos dos jovens pobres, em grande parte, imigrantes e filhos de imigrantes. Não estão sendo levados a sério os avisos de Paris. A cidade, nos últimos séculos, tem sido o espaço da rebeldia em nome da liberdade e da igualdade, bem como dos mais sangrentos conflitos. Da noite de São Bartolomeu, em 1572, na qual os católicos - em nome da ambição pelo poder - chacinaram os protestantes e a conseqüente reação huguenote, com a mesma violência, em toda a França, à brutalidade da repressão contra a Comuna de Paris, três séculos depois, se encontra a trincheira entre o que há de melhor e o que há de pior no coração do homem.

A rebelião destes dias é diferente da última, de maio de 1968, conduzida por estudantes universitários, nutridos de Marcuse e Adorno, via Cohn-Bendit e outros militantes, em suma, gente da classe média incomodada com o mal-estar geral de sua geração. Hoje, os revoltosos são os sans-culotte como os de 1789, agora sem a liderança dos intelectuais e dos citoyens da burguesia então emergente, que levaram o povo a destruir a Bastilha.

Embora as perdas pessoais sejam mínimas, mais de 3.000 veículos foram destruídos nestes dez dias. O automóvel, mesmo sendo usado pelos mais pobres, é o símbolo da civilização egoísta e alucinada que dura há pouco mais de um século. É a máquina por excelência para só produzir conforto e se assemelha aos seres vivos: movimenta-se, alimenta-se de combustível, expele rejeitos, ocupa espaço. E é a banalização do sonho burguês de nobreza: sendo, ao mesmo tempo, cavalo e armadura. Hoje, com a blindagem dos carros, armadura muito mais poderosa do que a usada pelos cruzados.

Não há, no mundo, atos sem conseqüência: a veloz industrialização da Europa Ocidental, depois do Plano Marshall, principalmente na Alemanha e na França, levou o capitalismo a importar mão-de-obra barata, procedente dos países pobres da Europa, da África e da América Latina, da mesma forma que antes se importavam escravos e chineses. Os procedentes da Espanha, de Portugal e da Itália adaptaram-se aos países que os chamaram, ou retornaram com a unificação do continente. Restaram os outros, a maioria da comunidade islâmica. Os filhos dos imigrantes de há 40 anos se encontram em terra de ninguém: não se sentem franceses (por que não os sentem franceses) nem cidadãos dos países de seus pais. Pior do que eles, só se sentiam, quando o colunista os conheceu, em um gueto de Munique, há 30 anos, jovens alemães mulatos, filhos de soldados negros americanos, concebidos durante a ocupação. Poucos puderam identificar seus genitores, alguns deles vivendo miseravelmente nos Estados Unidos, e para lá seguir. Na Alemanha, eram vistos como incômodos testemunhos de dupla humilhação. Alega-se que houve estupros de jovens alemãs, tanto da parte dos americanos, quanto dos russos, mas para quem sabe o que é guerra, não foi só isso o que ocorreu.

Voltando a este fim de semana e aos recados de Paris: há um mundo que cresce nas margens do neoliberalismo arrogante. No Brasil, ele se encontra nos estados periféricos das favelas, a cada dia maiores, e mais bem estruturados pelos líderes do chamado "crime organizado". Quando um desses pequenos líderes cai, outro lhe ocupa o lugar. É duro reconhecer que o que está salvando as cidades de uma rebelião da periferia é exatamente o tráfico de drogas, com sua distribuição de renda, que - segundo o desabafo de Maria da Conceição Tavares - permite a um adolescente melhorar o piso da casa onde moram a mãe e o pai desempregados e levar da farmácia os remédios que os mantêm vivos. Da mesma forma, o MST está poupando o Brasil de uma grande rebelião de marginalizados. E com o mesmo desprezo que brasileiros são tratados hoje na Europa e nos Estados Unidos, bolivianos e paraguaios estão sendo tratados em São Paulo.

A coluna de hoje deveria ter sido dedicada ao week-end de Mr. Bush, mas pensando bem, ele já não tem tanta importância assim.