Título: Além do Fato: União comercial, financeira e política
Autor: Marcelo Henriques de Brito*
Fonte: Jornal do Brasil, 07/11/2005, Economia & Negócios, p. A16

A expansão da União Européia tem sido motivada pela possibilidade de ampliar o mercado interno europeu e de aumentar seu poder geopolítico, o que favorece negociações com outros países (como Estados Unidos e China), blocos econômicos (como Mercosul e Nafta) e organizações internacionais (como OMC). Também cria laços de solidariedade entre os países europeus e soluciona conflitos, notadamente aqueles relacionados a limites territoriais.

Adicionalmente, a diversidade cultural européia, gerando numerosos nichos de mercado, pode beneficiar especialmente as pequenas e microempresas, as quais normalmente geram mais postos de trabalho e pagam melhor os tributos. O fluxo de negócios é ainda mais favorecido se não houver gastos extras com operações cambiais de compra e venda de divisas e tampouco incertezas quanto à variação cambial, fatos que já incomodaram desde turistas passeando por vários países europeus até grandes investidores internacionais. Por isso, foi introduzida uma moeda única, o euro, com a expectativa de não dificultar a evolução das transações empresariais que geram empregos.

Acontece que tanto alterações locais da densidade demográfica, quanto diferenças culturais, com reflexos sobre a quantidade de pessoas com propensão a poupar, gastar ou investir, contribuem para ativar um descompasso entre a variação na quantidade de transações numa região e a variação na disponibilidade de euro. Ainda que uma política monetária possa conter a inflação média numa grande área, é maior a ameaça de haver simultaneamente locais com inflação (pelo excesso de liquidez) e outros com deflação (pela falta de meio circulante), tal como já ocorreu na Europa.

Quando trabalhadores e empresários percebem que a retração econômica na sua região é efeito colateral da necessidade de conter, ainda que temporariamente, a inflação num outro local, onde há expansão de empregos e negócios, compreensivelmente afloram sentimentos de perda e inveja naqueles prejudicados, que recebem a solidariedade do seu governo regional.

Os gestores públicos constatam igualmente que a retração reduz a arrecadação tributária, o que compromete o equilíbrio fiscal, não sendo possível recorrer nem à senhoriagem (emissão irresponsável de moeda), nem a uma desvalorização cambial maliciosa. Tampouco é viável melhorar certas contas no balanço de pagamentos pelo estabelecimento de acordos bilaterais preferenciais com outros países, por contrariar os objetivos e as normas da União Européia.

As tensões decorrentes de uma crise localizada podem entretanto ser aliviadas pelo recebimento de apoio financeiro de outros locais com prosperidade e pela ausência de barreiras à migração de trabalhadores e empresários para locais mais prósperos. Essas soluções requerem a solidariedade dos que temporariamente estão em melhor situação. Todavia, a legislação não elimina barreiras culturais, que podem ser intransponíveis para quem não consegue renunciar ao convívio exclusivo com parentes e amigos na sua terra natal. Essas pessoas são as primeiras a seguirem um discurso nacionalista que é até capaz de unir, pelo menos num primeiro momento, a extrema esquerda e a extrema direita, como ocorreu na rejeição à Constituição Européia na França, em maio de 2005. Tal fato prejudicou a integração européia e evidenciou a dificuldade de convencer racionalmente a população das vantagens de uma nova forma de gestão pública na Europa, que requer um forte sentimento de solidariedade humana aliado a um concomitante e profundo respeito pelas diferenças individuais, o que pressupõe uma atitude liberal e não-intervencionista.

Devido à natureza inédita desta gestão pública, pode existir um ceticismo quanto ao êxito da união comercial, financeira e política na Europa, pois "uma integração política e, especialmente, uma integração cultural são necessárias para o êxito de uma integração monetária", como enfatizei no livro Crise e Prosperidade Comercial, Financeira e Política.

Ressalto que a integração cultural não significa uma homogeneização dos diferentes costumes, idiomas e religiões, mas sim uma noção de identidade européia para aceitar que alguns setores econômicos e certas localidades, em determinados momentos, concentrem atenções e recebam privilégios em detrimento de outros, por um prazo limitado. Assim, é muito interessante acompanhar o impacto da gestão do euro sobre as instituições públicas e privadas, assim como a coesão européia em torno de assuntos domésticos e externos.

*Administrador e Engenheiro, diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e sócio da Probatus Consultoria