Título: Longe do paraíso
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 10/11/2005, Opinião, p. A10

Nos incontáveis discursos - de improviso ou não - destinados a platéias diversas espalhadas dentro e fora do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva costuma sublinhar que ''nunca se fez tanto'' pelos pobres quanto em seu governo. Destaca como programas especialmente bem-sucedidos do mandato petista o Bolsa-Família e o Primeiro Emprego. Na entrevista concedida esta semana para o programa Roda Viva, Lula reafirmou a tese. Eis um exemplo de como a retórica governista apresenta uma tendência a exagerar os feitos e a omitir as fragilidades. Assim age a maioria dos governantes, sobretudo os mais desconectados da realidade. Anunciado em meados de 2003, o Primeiro Emprego, por exemplo, tinha uma meta inicial de beneficiar 250 mil jovens entre 16 e 24 anos, inserindo-os no mercado de trabalho. Um ano depois, revelam-se números muito mais modestos do que o presidente tenta fazer crer. Foram 6 mil, segundo os dados oficiais, revelados pelo Ministério do Trabalho. É pouco para os que enxergavam no programa a possibilidade de oferecer oportunidade a quem nunca trabalhou. Constatadas as dificuldades iniciais, reduziram-se as previsões para 150 mil beneficiados entre 2005 e 2006. Os resultados têm sido pífios: pouco mais de 10% da nova meta vem sendo cumprido. Não se percebeu de imediato que seria necessário primeiro qualificar os jovens antes de inseri-los no mercado. Resultado: os incentivos oferecidos aos empresários que contratassem acabaram se desmanchando no ar. Enquanto o Primeiro Emprego se mantém como um obscuro projeto, do qual restará pouco a mostrar, o Bolsa-Família consumou-se como a maior vitrine do atual governo. O comandante petista habituou-se a dizer que, com o programa, o Brasil ''nunca mais será o país da miséria''. Uma meia verdade. De fato, além de festejado pela propaganda oficial como um dos êxitos da gestão de Lula, o Bolsa-Família vem recebendo aplausos de organismos internacionais. Fusão de quatro predecessores - três dos quais criados no governo do presidente Fernando Henrique -, o Bolsa-Família paga benefícios a 8 milhões de famílias pobres. Tem ajudado, inclusive, a assegurar o dinamismo econômico a regiões pobres do Nordeste, como ressaltou recente estudo do economista José Márcio Camargo, professor da PUC do Rio. Ao presidente coube o mérito de perceber as falhas iniciais do projeto social de seu governo, quando ainda se resumia ao Fome Zero. Lula entregou a tarefa de ajustes a um competente ministro, Patrus Ananias - integrante da pequena galeria de homens públicos que preferem a ação à retórica. Ananias aperfeiçoou políticas já desenvolvidas na gestão anterior, e é bom que seja assim, sobretudo num país acostumado a reinventar a roda a cada mudança de governo. O fato é que o Bolsa-Família transformou-se num monumental cabo eleitoral para o presidente Lula. O maior problema, contudo, é que a expansão do programa não foi acompanhada por medidas capazes de tirar essas pessoas definitivamente da pobreza. Embora ajude a elevar a renda de famílias em situação socialmente perversa, o Bolsa-Família não tem contribuído para reduzir a desigualdade ou mesmo promover uma redução substantiva da pobreza. Não se criam oportunidades reais, tampouco se ampliam a oferta de serviços para tais pessoas. Em outras palavras, embora se revele um passo gigantesco, com notável impacto econômico, ainda se resume a uma política assistencialista. Essa crítica é feita por especialistas e por um dos criadores do programa do qual o Bolsa-Família é herdeiro, o então governador do Distrito Federal Cristovam Buarque. Originalmente, o Bolsa-Escola era uma solução simples para uma questão complexa: considerava a escola o caminho para a superação da pobreza, e a bolsa, um instrumento para levar os pobres à escola. Baseava-se em dois pilares fundamentais: fortes investimentos na educação pública e o pagamento de um salário por família, desde que todas as crianças estivessem na escola, com freqüência mínima de 90%. A diferença, portanto, está na premissa de uma escola básica de qualidade, capaz de garantir oportunidades no futuro. O presidente Lula chegou a dizer que não importa se o Bolsa-Família é assistencialista ou não. Importa, sim. Educação é um investimento que emancipa. Nos moldes atuais, os filhos dos filhos do Bolsa-Família continuarão dependentes do programa. No balanço geral, portanto, há razões para comemorar a subsistência de milhões de pobres. Mas sobram motivos para inquietar-se com o futuro, quando se espera que essas mesmas pessoas comecem a andar com os próprios passos.