Título: O levante das periferias
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 11/11/2005, Opinião, p. A11

No passado os fluxos migratórios caminharam do Norte para o Sul, onde eram bem recebidos, como mostra nossa América Latina, cheia de italianos, espanhóis, japoneses, chineses etc. A tragédia social do chamado Terceiro Mundo fez esse fluxo se inverter: os povos do Sul hoje correm agora em direção ao Norte, esperando receber um pouco do que resta do welfare state. Mas, se o primeiro fluxo deu-se numa fase de ''ouro'' do capitalismo, agora os povos desesperados do Sul chegam ao Norte em sua mais aguda fase destrutiva: lá não há mais trabalho, não há welcome. Uma polícia em geral truculenta e racista controla os aeroportos e freqüentemente faz o imigrantes migrarem de volta. Os EUA fecham a bala o seu muro abjeto, matando os chicanos de todas as partes da América Latina que querem tentar sobreviver no império. O país mais belicista do mundo mostrou, entretanto, que o Katrina atinge mais os negros, os pobres, os imigrantes, enquanto os ricos se arrumam em outros palácios e condomínios. Em 1993, vale recordar, os negros de Los Angeles se sublevaram. Foi preciso que o império destinasse sua força repressiva plena para sufocar o levante. Mas a França, ao contrário, (quase) sempre procurou ser um pouco mais generosa com os imigrantes. Tem uma história republicana de revolução pela igualdade, fraternidade e liberdade. Teve os sans-cullote impulsionando sua revolução. Teve a majestosa Comuna de Paris, que parece ter ficado para a história, embora ainda possa ter futuro. Mas tem uma triste história recente, onde neoliberais de direita alternam-se com a direita da socialdemocrática para o desmantelamento dos direitos sociais. Sob as vistas cautelosas de Le Pen, o bárbaro. E guetizaram os negros imigrantes da África, os árabes, os imigrantes pobres. No passado, eles eram recebidos para fazer o trabalho sujo. Agora que até esta modalidade de labor é disputada, recebem-lhes, mas isolando-os nos subúrbios pobres. Aceitam-lhes, mas os excluem do trabalho, da sociabilidade, da cultura. Da vida. Vivem em cortiços que têm a cara do Terceiro Mundo, embora estejam nas cercanias de Paris. Enfrentam as polícias que usam a mesma linguagem: se é negro, imigrante, é a ''escória'', como disse seu ministro do Interior, o neonazista Sarkozy, representante de um governo de direita que só ganhou porque a direita mais boçal poderia se impor. Os levantes estão estampando a revolta contra o desemprego, a precarização do trabalho, a perda de dignidade humana e do que resta de sociabilidade. Tudo em nome de uma lógica onde a produtividade, o mercado, a riqueza dos conglomerados, a opulência dos magnatas é o que conta. Trata-se da explosão que mescla, com sutilezas, as dimensões de classe (não há ricos entre os rebeldes), etnia e raça, com traço geracional (a idade média dos sublevados entre 15 e 20 anos), dentre tantas outras particularidades. É a rebelião dos guetos que começam a cansar de ''perder a vida cotidianamente pensando em ganhá-la amanhã''. Isso porque, do modo como hoje vivem, não têm mais futuro. Estão em Paris, mas se sentem em Bagdá. São os sans papiers e que por isso precisam fugir da polícia, mesmo quando não roubaram nada. Que se rebelam contra as riquezas mais visíveis. E há algo que mais simboliza poder neste século XX que se foi do que o automóvel, o símbolo mais cabal do american way of life? O carro é a primeira vítima. Nestes últimos dias tornaram-se sucata aos montões. Cálculos modestos falam em 30 mil carros destruídos desde janeiro de 2005. O governo francês responde com toque de recolher, como nos tempos da luta de libertação da Argélia. As perguntas que ficam: por que cortaram os direitos sociais? Por que permitiram a destruição do trabalho e a explosão do desemprego? Por que implementaram uma política de guetos para isolar os imigrantes? Vale lembrar que cerca de 7 a 8 milhões de franceses vivem com menos de 800 euros por mês e são os considerados pobres e 1,2 milhões vivenciam o subemprego, segundo estudo de l'INSEE. (Figaro, 23/10/2005, citado por Charles Jérémie, texto preparado para debate na revista Carré Rouge). Da periferia de Paris, as rebeliões espalharam-se pela França e já chegaram à Bélgica e Alemanha. A nova senhora da direita vai enfrentar mais cedo do que esperava a revolta da periferia. Tony Blair, o amigo inglês de Bush - que agora tem também amigos nos trópicos - e Berlusconi devem estar preocupados. Parece que está começando o levante da periferia. Ou melhor, das periferias.