Título: Tortura fragiliza governo eleito
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Fonte: Jornal do Brasil, 17/11/2005, Internacional, p. A9

Políticos árabes sunitas exigem investigação internacional sobre a descoberta de um porão de torturas no Ministério do Interior iraquiano, órgão do governo eleito com a ajuda dos EUA e vinculado a uma poderosa organização xiita. Na versão oficial, a cadeia clandestina foi encontrada ''por acaso'' por soldados americanos no domingo. Dentro, estavam 173 prisioneiros sunitas, muitos com marcas de tortura.

Apontada como a responsável, a milícia Badr negou envolvimento. Os xiitas controlam o ministério, mas afirmam que a acusação é vinculada ao esforço para desacreditar a etnia antes das eleições de dezembro.

A descoberta da cadeia se transformou num grande constrangimento para um gabinete empossado sob a promessa de devolver os direitos humanos ao país após décadas de ditadura. A cadeia clandestina pode não ser a única. Segundo Tariq al-Hashmi, do Partido Islâmico Iraquiano, o porão seria apenas um dos locais ilegais de detenção.

- Há tempos dizemos que pessoas usando uniformes do Ministério do Interior estão invadindo casas à noite e fazendo prisões. Só que ninguém acredita nisso - diz. - Queremos que as Nações Unidas, a Liga Árabe e outras organizações de direitos civis conduzam uma investigação internacional - completa, acrescentando que uma missão do partido entregou um relatório sobre o assunto ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair, em maio. O documento, segundo souberam, foi repassado às autoridades americanas e esquecido.

Os EUA, principal suporte do governo iraquiano, preferiram evitar comentários sobre o caso. O diretor da Inteligência Nacional, John Negroponte - sob intensa pressão diante da descoberta que a CIA também mantinha prisões clandestinas no Leste Europeu - esteve reunido ontem em Bagdá com o primeiro-ministro Ibrahim al-Jaafari.

Hadi al-Amery, líder da milícia Badr - o braço militar do poderoso Conselho Supremo para a Revolução Islâmica (SCIRI) no governo - também nega qualquer relação com a cadeia.

- Quem controlava aquele bunker era o Ministério do Interior. E os americanos estavam lá todos os dias. Não temos nada a ver com isso - argumenta o chefe da milícia formada nos anos 80, no Irã. Desde a queda de Saddam, esse grupo se fortaleceu no governo. O ministro Bayan Jabor é dos quadros da Badr.

Muitos iraquianos acusam a força xiita de ter conseguido se infiltrar nos serviços de segurança e na polícia. Mohammad Duham, diretor de uma ONG de apoio aos direitos políticos dos prisioneiros, afirma ter reunido, nos últimos dois anos, testemunhos de vários presos com relatos de abusos no bunker de Jabaryia e em outras unidades.

- O que está acontecendo é pior até do que na época de Saddam - atesta.

Na cela clandestina, vários instrumentos de tortura foram encontrados, como serrotes para cortar membros e lâminas com as quais os torturadores arrancavam a pele dos presos. Do lado de fora, os guardas do Ministério não demonstravam qualquer remorso com o tratamento dado aos ''terroristas''.

Seif Saad, de 18 anos, que ocupava uma das guaritas, confirmou que ele e outros colegas invadem as casas dos sunitas ou os seqüestram em plena rua.

- Nós os pegamos e enfiamos sacos plásticos em suas cabeças. Depois, os algemamos com as mãos para trás e os levamos embora - conta.

Hadi al-Amery diz que a operação de domingo foi realizada para dar aos sunitas maior poder político.

- Os americanos são acusados de violações dos direitos humanos em Guantánamo e em Abu Ghraib. Precisavam disso para encobrir os seus próprios crimes - calcula.

Saad Farhan, comerciante de 40 anos de Ramadi (reduto sunita) contou que um irmão e um primo estavam entre os 173 presos na cela clandestina. Ambos tinham sido levados por agentes do ministério.

- Há pessoas no governo que nos querem longe das eleições nos aterrorizando. Há agentes iranianos por trás. Iraquianos legítimos não fariam isso - afirma, apontando uma das principais razões de desconfiança entre as principais etnias do país.

A denúncia não é novidade para a ONU. Informes divulgados esta semana pintaram um quadro sombrio do sistema legal montado pelo atual governo.

''Operações maciças de segurança feitas pela polícia e pelas forças especiais continuam a desafiar as instruções dadas pelo Ministério do Interior em agosto, nas quais se definiam as garantias individuais daqueles que eram detidos em tais buscas'', afirma um comunicado.

É raro ver soldados dos EUA nas ruas de Bagdá hoje. O que se observa é a polícia iraquiana dividindo espaços com milícias que montam postos de controle sem serem incomodadas. Homens de rostos cobertos por balaclavas ou escondidos atrás de kefyias e óculos escuros, com cintos de couros e armas pesadas. Diante de cenas assim, um americano comentou:

- A cada dia Bagdá está mais parecida com Mogadiscio - avalia, comparando com a capital da Somália, um país destruído pela guerra civil e pela ação de gangues armadas.