Título: Tortura democrática
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/11/2005, Opinião, p. A14
Os estarrecedores resultados de uma pesquisa de opinião nos Estados Unidos, segundo os quais a maioria da população apóia o uso de tortura contra suspeitos de terrorismo, emitem um sinal terrível para o mundo. A maior democracia do planeta parece ter sucumbido aos desígnios do medo, equiparando-se aos que a atacam naquilo justamente que deveria ser a separação ética entre os dois lados do front.
Fenômeno que acompanha a humanidade desde seus primórdios, o abuso contra prisioneiros sempre foi condenável, embora jamais tenha deixado de existir. A legislação pró Direitos Humanos, inaugurada após a II Guerra Mundial, estabeleceu um ponto de inflexão ao torná-lo ilegal no campo do Direito. Foi uma conquista importante, ao custo de milhões de vidas. É esse sacrifício que os americanos, ao declararem apoio a tais práticas, põem a perder.
À importância desse dado se soma a mesma tendência à tolerância registrada em países da Europa. Em comum, a necessidade de combater o terrorismo, ainda que os métodos façam extremistas e seus perseguidores parecidos. Ambos, no frigir dos ovos, temem a liberdade, embora façam de tudo para passar a impressão de que lutam por ela.
Não à toa, organizações como a Anistia Internacional vêm alertando para a progressiva supressão de direitos civis em nome de uma democracia realmente ameaçada. Iraque, Afeganistão, Guantánamo e agora cidades do Leste Europeu e da Escandinávia se transformaram em sinônimos do mesmo horror para os quais a civilização foi convocada a lutar e defender após os ataques de 11 de setembro de 2001.
O que é preciso deixar claro quando esse tipo de comportamento se dissemina e ganha tamanho aval é o reflexo nas circunstâncias menores da vida em sociedade. As prescrições da teoria política definem esse estado, sobretudo como um compromisso de um grupo de cidadãos com certas normas comuns a todos. A quebra de qualquer uma naturalmente implicaria em sanções oferecidas pelo Estado, uma entidade formada pelo mesmo conjunto de indivíduos.
Ainda assim, em nenhum caso se pode aceitar que a tais regras se some o abuso físico ou a imposição do sofrimento como uma vendetta autorizada e legitimada. Ou como uma forma de obter informações necessárias com alguma credibilidade. Sempre que isso ocorre, perdem-se a nobreza da lei e a retidão da Justiça. Ser culpado ou inocente, dessa forma, não depende do delito, mas de quanta dor se pode suportar durante o processo de interrogatório. Vale lembrar que a fonte primária da informação usada pela Casa Branca para invadir o Iraque foi um terrorista líbio preso em uma cadeia afegã por tropas americanas. Saddam Hussein, como se sabe, não tinha armas de destruição em massa, mas o preso confirmou isso aos seus algozes. Por arrependimento? Claro que não. O preço de um erro de tal monta a juventude americana, lançada em um conflito absurdo, continua pagando.
A história é pródiga, também, em situações nas quais a presunção de culpa sustenta o sofrimento. E onde a omissão dos legisladores dá aos algozes o salvo-conduto. A justificativa dada pelos americanos é a mesma usada pelo regime de Augusto Pinochet e pela ditadura militar argentina para dar cabo de milhares de inocentes. Todos morreram ''por serem terroristas''. Inclusive o poeta chileno Victor Jara, cujas mãos foram amputadas em sessões de tortura destinadas a calar aquilo que o tornava tão temível: a palavra.
O choque da democratização da tortura não surpreende, por exemplo, aos brasileiros. Infelizmente, nas cadeias e delegacias nacionais, como atesta o informe de 2005 da Anistia, e até em quartéis do Exército - como revelaram imagens divulgadas pela televisão esta semana -, continua a haver abusos contra presos ou pessoas de patente inferior. É um aspecto sombrio, como um vinhoto pestilento gerado por relações de poder distorcidas.
Contra tamanha amplificação negativa, resta aos que se rebelam buscar alento e força nos princípios da civilização. O terrorismo é um polvo com longos tentáculos e exige um combate sem tréguas. Mas o endosso às práticas de abuso acaba tornando real a percepção de que esta é a única forma pela qual se pode garantir a liberdade em todo o mundo. E não é.