Título: Sem avanços
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Fonte: Jornal do Brasil, 08/11/2005, Opinião, p. A10
A visita do presidente George Bush ao Brasil consumou o balanço da 4ª Cúpula das Américas, encerrada sábado, em Mar del Plata: muitos gestos destinados às habituais fotografias, a reafirmação dos antagonismos já revelados entre líderes americanos e a percepção de que poucos avanços práticos poderão ser sentidos no curto e médio prazos. O encontro que reuniu 34 presidentes no balneário argentino terminou, por exemplo, sem a resolução do principal assunto em pauta - a criação da Alca, a zona de livre comércio das Américas. A negociação estava paralisada havia 22 meses. Assim continuará. Ou, pelo menos, seguirá suspensa até que haja, se houver, algum entendimento entre Estados Unidos, Argentina e Brasil. O óbvio, portanto. Como afirmou o vice-chanceler de Néstor Kirchner, Jorge Taiana, não era preciso levar todos os governantes ao litoral argentino para ''concordarem em discordar'', referindo-se à inclusão, no documento final da cúpula, das duas posições divergentes sobre a criação da Alca. Americanos, canadenses e mexicanos defendem a continuação das negociações, como vinha ocorrendo até a paralisação das reuniões, em fevereiro de 2004. Mercosul e Venezuela sugeriram a inexistência de condições para seguir negociando. O documento final expôs tanto a divisão do continente quanto o fracasso da cúpula. Como nenhuma das partes cedeu - nem o Mercosul, nem a Casa Branca -, o texto incluiu os dois pontos de vista. Um exotismo que, além de dar combustível para o discurso doméstico do anfitrião, revelou-se uma derrota para Bush, evidenciada pela tentativa de reduzir a importância da reunião de Mar del Plata e transferir a galeria de prioridades para as negociações da Organização Mundial do Comércio.
A reafirmação das divergências, a despeito dos sorrisos e troca de gentilezas, também deu o tom da passagem de Bush pelo Brasil - sobretudo quando retomadas as conversas sobre as relações comerciais, incluindo o fim dos subsídios agrícolas. Do encontro com Lula, no entanto, convém sublinhar o aceno americano de um projeto político e econômico para o hemisfério. Se conduzido com sensatez e formulado em parceria com líderes da região, trata-se de um projeto que pode trazer notáveis dividendos para a América Latina. Resta saber se a administração de Bush será capaz de promover esse debate ou tentará impor um plano pronto. Há interrogações ainda se o atual governo dos Estados Unidos tem hoje legitimidade junto aos países latino-americanos.
Não é demais lembrar, por exemplo, a insistência da retórica antiamericana vigente ao sul do Equador. Neste terreno, felizmente, o Brasil pode agir como um moderador essencial. Para surpresa de observadores nacionais e internacionais, Lula e Bush estabeleceram um diálogo balizado pelo pragmatismo e pelo respeito mútuo. Disposto a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o governo petista arrefeceu o ímpeto retórico ao lidar com Washington - apesar de excessos pontuais. Ao contrário do que sugeriram as manifestações em Brasília, a aproximação tem tudo para ser benéfica ao Brasil e à América do Sul.
Não são poucos os contenciosos entre os dois países, e um estremecimento nas relações entre ambos tende a prejudicar o lado mais fraco da disputa. Dos dilemas concretos a enfrentar destacam-se a propriedade intelectual (incluindo a quebra de patente de medicamentos), a disputa do algodão na OMC e o próprio impasse nas negociações da Alca. São assuntos delicados, a serem superados com altivez e responsabilidade. Sem arroubos.